A manhã começa serena neste meu tugúrio
secreto do Quartier Latin. A sensação de imortalidade da alma surge a par do
desejo de perceber um pouco mais da razão de existir. Por isso o anseio de paz
e silêncio. Por isso a necessidade de pensar e refletir. Por isso o querer
compreender o Ser, enquanto se desenvolve o Estar.
Sento-me diante do vidro baço da janela,
escutando Deus, encarnado em homem, através da ária So oft ich meine Tobackspfeife, o que me desperta a vontade de
reencontrar-me com o meu velho Calabash.
Encontro-o em repouso de semanas e, após alguns minutos deixo-o pronto para o
deleite.
O tabaco a ser utilizado deve ser sempre
aquele cuja composição inclua uma mistura proveniente de quatro continentes, a
sua textura, coloração e contraste, devem ser únicos e, para sabermos se o que
possuímos está nesse patamar, usamos o olfato, aprimorado depois de anos de
habituação, para concluirmos e decidirmos sobre qual saborear. Convém termos em
casa três tipos de tabaco, o Aromático,
o Virgínia e o Inglês, fazendo assim uma variação diária, para que o nosso paladar
absorva e compreenda o que tange a lira da excelência.
A melodia espalha-se no ar. A sensação
de bem-estar que sinto é incomparável. Experimento, entre os dedos a textura e
nas narinas o aroma, percebo o tabaco, compreendo-o, sei o modo de o compactar,
de obter o espaço perfeito no fornilho para que a baforada seja prazerosa. Com
haste apropriada acendo o Calabash, para
não queimar demasiadamente o tabaco. Jamais o deixo apagar, pois ao reacendê-lo
posso sentir um sabor ocre e desagradável. Tem que arder lenta e saborosamente,
sem ameaça de morte súbita. O ritmo deve ser marcado, compasso a compasso, nota
a nota, sem inalar, enviando lentamente subtis anélitos de ar, da boquilha para
o fornilho, assegurando assim o fulgor da ardência.
A melopeia entorpece os sentidos, a
atenção volta-se para alguém que passa, longe e leve, junto ao Sena. Enquanto
sinto veementes ensejos de volúpia provocados pelo ritual, inebrio-me com a
visão da quantidade de trigo conduzido por estas águas, transportadoras também
de outros produtos, dos mais variados, uma hidrovia como poucas no mundo. Mais
abaixo surge um barco mosca, o famoso Bateau-mouches, tendo em si uma quantidade razoável de
pessoas, provavelmente turistas. A vida em Paris é intensa, aliciante e com
laivos de encanto esotérico.
O Calabash
pede descanso. Um novo cerimonial começa, enquanto admiro a gigante frondosa
que repousa atrás dos vidros baços das janelas. Confirmo a frieza do objeto,
retiro, lenta e progressivamente, toda a cinza do fornilho, procuro resíduos na
boquilha, tento ser a minúcia encarnada em homem, cuido, para usar em outra
manhã inspiradora, sinto a minha arte a latejar nas veias, a vontade de atirar
letras a um papel, alvo e virtual, nunca arisco.
O Calabash
terá repouso, viro o bocal para baixo, pouso-o. Vai adormecer em si. Como um
herói em retorno de uma batalha vencida. Só voltará a subir em seu cavalo e a
desembainhar a espada dentro de duas semanas. Só seguirá o seu destino quando
estiver curado das feridas desta última peleja.
Em subsequente dia devo servir-me de
outro Kixima, não este Calabash e, quando isso se der, seguirei
o culto, feito moda de princípio de outono, com o blend maduro e os meus olhos a absorverem o amarelo das folhas que
caem. Pode até ser em uma das margens do sumptuoso. Que é belo e transpira
vida. Que é meu, pois em meu olhar se aventura.
A minha solidão abençoada termina quando
a casa é invadida pelos rebentos que a enfloram. Natália, a nossa visita
querida, lança-me um olhar cheio de cuidados profissionais e, sem titubeio,
pergunta-me pelo artigo que lhe devo. Surpreendendo-a afirmo que acabei de o escrever. Ela ri. Escuta-o atentamente. Depois coloca em
dúvida se um cachimbo pode ser um ornamento da moda cotidiana, e se poderei abordar
esse tema em seu blogue. E eu respondo que, se não é estamos com razoáveis
problemas, pois devemos desclassificar também os brincos, as meias, e mais
alguns panitos… Está aí uma bela ideia: eliminemos tudo. Voltemos às cavernas.
A folha de parreira é a moda!
Que venha daí Johann Sebastian
Bach. O resto são manias! Fugazes como a vida.
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