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A arte de Paulo Autran

 

Um dos amigos de quem sinto mais saudades é esse Senhor, cujo nome está em epígrafe. O seu percurso profissional mistura-se com a história do teatro brasileiro. O seu talento ombreia com o das divindades dos palcos, Leopoldo Fróes (1882-1932) e Laurence Olivier (1907-1989). A sua postura era ímpar, a de um cavalheiro, praticamente um aristocrata.

Estava com 25 anos de idade quando o conheci, um ser ainda imberbe. Ele, com simpáticos 68. Gigante há muito. Respeitado, cultuado, um exemplo.

Era carioca, nasceu na cidade do Rio de Janeiro, numa quinta-feira, 7 de setembro de 1922. Muito influenciado pelo pai, Walter Autran (1891-1960), formou-se na Faculdade de Direiro do Largo de São Francisco, em 1945, desejando abraçar carreira na diplomacia.

Não almejava ser ator, porém estreou como amador, em junho de 1947, no Teatro Municipal de São Paulo, com a peça “Esquina Perigosa”, de autoria de John Boynton Priestley (1894-1984), com direção de Silveira Sampaio (1914-1964).

Influenciado por Adolfo Celi (1922-1986) entrou no TBC (Teatro Brasileiro de Comédia), participando na sua primeira peça, como profissional, “Um Deus dormiu lá em casa”, de autoria de Guilherme Figueiredo (1915-1997). A estreia ocorreu a 13 de dezembro de 1949, no Teatro Copacabana, na Cidade Maravilhosa.

Paulo morava nos Jardins, um bairro elegante de São Paulo. A sua descontração levava-o muitas vezes a receber os amigos de roupão, pijama e pantufas.

O seu indefectível cigarro incomodava-me. A sua palavra encantava-me. Possuidor de uma verve delicada e nobre, falava sem erros; lia, em voz alta, de um modo cativante, quase lírico, e era sincero ao extremo ao analisar um texto meu, em prosa ou verso. Deliciava-se quando falávamos de Guimarães Rosa (1908-1967), Rubem Braga (1913-1990) e Eça de Queiroz (1845-1900), todavia, eu “empurrava-lhe” Martins Fontes (1884-1937), Camilo Castelo Branco (1825-1890) e Machado de Assis (1839-1908), acabando por entusiasmar-se.

Possuía Heterocromia (um olho verde e outro castanho), escreveu a sua primeira peça de teatro aos 11 anos de idade (As Onças da Jamaica), teve duas sociedades teatrais: “Os Artistas Amadores” (1947-1959) e a “Companhia Tônia-Celi-Autran” (1956-1962), com os amigos Tônia Carrero (1922-2018) e Adolfo Celi. Fez noventa peças de teatro, participou em novelas e em muitos filmes.

Na televisão, as suas personagens ficaram na memória coletiva: Bruno Baldaracci (do Pai Herói), Coronel Tonico Bastos (na primeira versão da novela Gabriela, Cravo e Canela), Otávio de Alcântara (em Guerra dos Sexos), e o empresário Aparício Varela (em Sassaricando).

No teatro, colecionou uma infinidade de sucessos, com personagens marcantes, entre eles, Zeus (Esquina Perigosa), Balabanoff (Amanhã, se não chover), Otelo (Otelo), Abel Zorko (Variações Enigmáticas), Higgins (My fair Lady).

No cinema, granjeou aplausos em inesquecíveis interpretações, como, por exemplo, sendo Porfírio Diaz (Terra em Transe), o Coronel Felizberto (O Enfermeiro), o Avô de Mauro (O ano em que meus pais saíram de férias), o Professor Pussièrre (O Passado).

Por opção, escolheu o teatro, pois era um homem do palco, em detrimento do cinema e/ou da televisão, géneros em que pouco participou. Até dezembro de 2000 (em janeiro de 2001 mudei-me para Lisboa) assisti a todos os seus espetáculos. Deixou, em cada um, uma impressionante marca.

O Senhor dos Palcos morreu no dia 12 de outubro de 2007, aos 85 anos. Menos de uma hora depois do infausto acontecimento, o meu saudoso amigo Aziz Bajur (1938-2022) telefona-me. O seu humor fora abafado pela notícia. A voz séria, embargada, espelhou o que sentia. Sentíamos.

Paulo Autran foi cremado. Suas cinzas foram colocadas no belo jardim de Karin Rodrigues (1936-).

Em 15 de julho de 2011, a Lei nº 12.449 o declarou “Patrono do Teatro Brasileiro”.

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