Em Portugal já se anunciava a manhã. O
telefone toca. Atendo com toda a naturalidade e ouço uma voz conhecida, que
entre lágrimas e soluços, diz-me que está a cumprir uma obrigação, a pedido de
seu pai: eu deveria ser o primeiro a receber a informação. Ouço, incrédulo. A
voz custa-me a sair. Os olhos marejam. E, mais do que nunca, desejo que exista
vida após a vida. Despedimos-nos. Pouso o aparelho. Fico a olhar para um Nada
que teima em não sair da minha cabeça. Prevejo um dia longo, triste, solitário.
Lembro-me de um verso, de outro, de muitos… a melhor homenagem, a única
possível, é a que pode elevar-nos a alma, então, leio os seus poemas, em voz
alta, como se estivesse a dizer-lhe que são magníficos. A saudade que sentirei
do amigo será infinita. Lembro-me de outra homenagem possível: um soneto! E
escrevo. Para meu espanto ele vai surgindo veloz, sem receios, avançando por
entre espaços. E, num ápice, anuncio aos Céus que o Amazonas do Brasil é uma
nova estrela que amanhece.
*
Às três horas da manhã do dia 4 de
junho de 2006 o mundo lusófono perdeu um de seus melhores poetas, deixando de
luto todos aqueles que conheciam e privavam da amizade desse grande cultor das
letras.
Desde o ano de 1983 que convivia
fraternalmente com essa figura ilustre. Foram vinte e três anos de encontros
culturais e de admiração recíproca.
Foi pelas mãos de Walter Waeny que conheci o meio literário santista, foi pelas
minhas que ele entrou no Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Das
dezenas de Instituições a que pertenceu essa era a mais ambicionada (apesar de
possuir no currículo um infinito de organismos de alto relevo, entre eles, o
Club dos Intelectuais de Paris). Depois de expor a sua magnífica obra literária
aos mestres daquele Sodalício (Casa que frequentei por anos a fio, e lá deixei
as maiores benquerenças), eis que surge o momento da sua vitoriosa eleição, a
coroação de uma vida literária de grande talento.
Walter
Waeny Júnior nasceu em
São Vicente[2],
cidade vizinha à minha querida Santos. Filho de Walther Joseph Waeny e Gilda
Rienzi Waeny. Neto de Johannes Waeny
e Fabiana Ave-Lallemant. Bisneto de Johann Jakob Waeny e Margaretha Baumann, de Alexander Ave-Lallemant e Joaquina Rosa Machado, de Michele Rienzi e Maria Caterina Sivieri, e de Vicente
Minervino e Rosa Magnavita.
Casou-se a 22 de maio de 1950 com a Sra.
D. Maria Clélia Dias, nascendo deste feliz matrimónio numerosa prole.
Walter
Waeny foi poeta,
trovador, ensaísta, filósofo, prosador, contista, biógrafo, dicionarista,
historiador, conferencista, antologista, declamador, teatrólogo, radialista,
aforista e tradutor. Autor de mais de uma centena de livros, em prosa e verso,
destacado homem de cultura, admirador do músico erudito Richard Wagner e do poeta Martins
Fontes. Sendo o poeta brasileiro mais premiado de sua geração, com inúmeras
medalhas de ouro em dezenas de cidades brasileiras, bem como em inúmeras
cidades da Europa. Possuía o dom de ouvir e falava para ensinar. Sempre, em
todas as horas de nosso convívio, foi objetivo e radical em relação à Arte.
Admiro-o por isso. Defendeu acirradamente os poetas simbolistas, românticos e
parnasianos, bem como os pintores e compositores anteriores a 1922 (ano da
malfadada Semana de Arte Moderna em São Paulo , que veio turvar as águas culturais do
Brasil). Comungávamos da mesma filosofia de vida. Admirávamos os mesmos
artistas do verso e da prosa. Nossas conversas versavam sempre em torno da Arte
Pura e terminavam com temas santistas.
Recordo-me de uma tarde, num solarengo
domingo, em que passamos quase seis horas a falar de Vicente de Carvalho, Paulo
Gonçalves, Fábio Montenegro e Martins Fontes. Os versos, que ambos
declamávamos, ecoavam por toda a sala, repleta de telas de autoria de sua
progenitora. Que tarde magnífica! Quando a interlocução era em seu escritório,
inevitavelmente, ele sentava-se ao lado do retrato de Martins Fontes, pois dizia-me que assim beberia da sabedoria do
Mestre! A todo o instante a sua esposa surgia com um mimo, um café, uma
iguaria, uma dedo de prosa carinhosa. Que casal feliz. Que amizade que sempre
me ofertaram.
Hoje, garanto-vos, sinto um enorme
vazio. Um triste e vago sentimento. Mais de seis anos depois, do
desaparecimento de Walter Waeny, a literatura lusófona está muito mais
fragilizada, pobre, mergulhada na mediocridade. Olho para a sua extensa obra
literária e sinto uma enorme saudade daquelas tardes de convívio, daquelas
horas de rara cultura, daqueles momentos em que ouvi os seus livros, antes de
serem publicados.
Lá
longe, no Céu, uma estrela amanhece
A Walter Waeny, Poeta e Amigo
Em tardes venturosas de poesia e arte
pura,
Walter e eu comungávamos
no mesmo tom,
Ora sobre Fontes, ou
Wagner, ora obscura
Figura, que não posso aqui expor,
não é bom-tom.
Mexericos de poetas… simples
diabrura,
Para divertir, e consolar
o humor bom…
Assim passávamos tardes
de conjetura,
Revivendo e cantarolando
em semitom!
Hoje, estou mudo, sem coragem de cantar,
E desejoso por um novo
céu de anil,
Cujo esplêndido rubor
venha iluminar,
Alguma estrofe inspirada,
primaveril.
Falta-me o chão. O amigo
original e exemplar,
Que era o rio frondoso, o
Amazonas do Brasil!
[1] Originalmente publicado em: Calisto, Rui.
“Walter Waeny”. In.: A Língua Portuguesa.
Editora Martins Fontes Portugal, nº 4, Ano I, julho de 2006, pp.1-3. OBS.: O
autor efetuou algumas modificações em relação à primeira publicação.
[2] Walter Waeny nasceu em São Vicente , a 6 de
dezembro de 1924 e morreu em Santos, a 4 de junho de 2006.
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