Era uma tarde de muito sol, e o bom
velhinho andava preocupado em selecionar as renas para o Natal. Ele precisava escolher
dez entre as cinquenta que se candidataram, não era tarefa fácil. Nove seriam
titulares e ajudariam a puxar o trenó, e uma seria a suplente, para o caso de
acontecer alguma baixa por questões de saúde, coisa muito comum nas renas
natalícias, devido à inconstância das temperaturas no planeta Terra. Afinal,
não é nada engraçado viajar por todo o globo terrestre numa só noite,
enfrentando o verão em alguns lugares e o inverno noutros. Uma chatice. Porém…
…Depois de quase dois dias de avaliações,
a escolha recaiu sobre: a Corredora,
a Dançarina, a Empinadora, a Raposa, o Cometa, o Cupido, o Trovão, o Relâmpago, o Rodolfo e a Madalena. E
lá foram as dez renas para os treinos.
A Corredora
era a mais veloz de todas, a Dançarina
parecia ter nascido com todo o conhecimento que existe sobre a música do mundo,
pois dançava todos os estilos com classe e leveza, a Empinadora fazia brilhantes acrobacias no ar, a Raposa era matreira, sabendo
desenvencilhar-se do maior perigo que encontrasse, o Cometa era também muito veloz, mas não conseguia perceber muito bem
o significado de “curva”, o Cupido
era romântico, derramado de amor por tudo e por todos, sempre querendo
aproximar as pessoas, e os animais, para que fossem felizes, o Trovão era bravo, robusto, musculado,
impondo respeito e mantendo a ordem, o Relâmpago
era também um velocista, perito em grandes arrancadas do solo ao Céu, tanto que
era ele que puxava a todos no momento sublime da escalada pelo ar, um
verdadeiro e poderoso campeão em força e em rapidez, mas que possuía um único
senão: quando chegava ao limite das suas forças saíam dele vários clarões que
encandeavam a todos, quase parecendo um bastão de fogo de artifício, o Rodolfo era um perfeito galanteador,
gostava de conquistar as renas mais bonitas e, principalmente, as solteiras,
possuindo uma peculiaridade que o fazia enormemente popular: ostentava um vistoso
nariz vermelho, um charme… e, por fim, a Madalena…
bom… a Madalena era linda, tímida,
veloz, simpática, ordeira, pontual, inteligente, porém… andava sempre calada.
Nunca se ouvia, nunca proferia um som, por incrível que possa parecer: ninguém,
nunca, teve o prazer de ouvir o timbre da sua voz.
A primeira semana de treinos decorre na
maior normalidade. Aconteceram inúmeras palestras educativas, aulas de ballet para
despertar a graciosidade de cada uma e estudos de etiqueta para lhes ensinar a
levantar a cabeça com a altivez que o Natal merece. Só a Madalena teve maiores dificuldades pois era inexperiente em tudo,
enquanto as outras eram já mais tarimbadas e compreendiam os ensinamentos com
muito mais rapidez.
A segunda semana apresentou um certo grau
de dificuldade para algumas, pois foram focados os exercícios de destreza na
condução de um trenó. A Madalena foi
a última a terminar a série de curvas e contracurvas obrigatórias, assumindo
uma certa displicência ao ato de obedecer aos arreios que a mantinham segura ao
trenó.
A terceira semana decorre com certa
lentidão, pois o cansaço já era muito, sendo aprimorada a técnica da travagem
brusca, coisa comum quando o bom velhinho estava a viajar pelos ares e se
esquecia de parar numa chaminé. Inevitavelmente ocorria o famoso “prego a
fundo” e lá iam as renas ao desespero… segurando toda a sua velocidade com as
quatro patas estaticamente fincadas no ar. A Madalena, coitada, toda a vez que tinha que travar batia com o
focinho na companheira que ia à frente… estava sempre distraída…
A quarta semana foi extenuante,
consistindo de aulas práticas de paciência, pois, elas, as renas, precisavam de
muita quando se tratava de desentalar o anafado velhinho de algum fumeiro mais
apertado. Madalena, sempre ela,
adormeceu em todas as aulas.
No dia 22 de dezembro estavam os
presentes embrulhados e prontos para seguirem ao seu destino, pois os duendes,
os gnomos e as fadas, todos ajudantes do bom velhinho, trabalharam arduamente
para que tudo estivesse pronto a tempo e horas, porém, viria agora uma prova de
fogo, o pai desse natalício momento decidira experimentar o trenó com o peso que
teria no dia das entregas, fazendo com que as renas sentissem qual seria o grau
de dificuldade que as esperava daí a dois dias. Elas, puseram-se, então, a
transportar prendas do armazém nº 1 para o armazém nº 2 em trenós individuais,
e a coisa correu melhor do que se esperava. Menos para a Madalena, que demorou o dobro do tempo das companheiras… pois não se
conseguiu entender com o guizo colocado no seu pescoço… dizia que lhe dava
sono!
No dia 23 daquele mês natalino um banho
de sais manteve a boa disposição das dez renas, além de muita alfafa fresquinha
e água cristalina para as goelas. Madalena
adormeceu na banheira. Quando acordou, a alfafa estava murcha e a água turva.
O dia 24, o grande dia, começa de forma
airosa: o bom velhinho decidira que todas as renas deveriam dar uma bela e
revigorante caminhada por uma planície da Lapónia, para exercitar os músculos e
oxigenar os pulmões. Assim foi. Quando voltaram, um tépido banho morno as
aguardava, além de uma excelente salada de milho, aveia e alfafa. Quando
voltaram, quer dizer… a Madalena não
voltou… tiveram que a ir buscar a um ponto distante, pois adormecera encostada
a uma pedra enorme.
Agora todos os leitores perguntam: Qual
foi o motivo que levou o bom velhinho a escolher a Madalena, se ela é uma rena um pouco diferente, um pouco calada e… aparentemente
preguiçosa…? A resposta é simples: Madalena
é a rena da bondade. É aquela que ajuda a todos nos momentos mais difíceis, a
que divide o alimento, a que auxilia os mais fracos, a que conforta os que
sofrem, a que anima os que estão tristes. Madalena
é só coração! E, se não bastassem essas qualidades, teve uma que a consagrou em
definitivo, o bom velhinho explicou a todos, enquanto bebiam chá junto à enorme
lareira da sua casa, que a Madalena era
a única, entre todas as concorrentes, que sabia que o Natal é a comemoração do
nascimento de um menino muito importante para a história da Humanidade, um
menino chamado Jesus! E que seria ela a líder de toda a comitiva quando
cruzassem os Céus.
Ah… E ele disse, também, uma coisa que
fez com que todos esbugalhassem os olhos: que ela era uma espécie de Enviada de
Deus, e que tinha sido o próprio Jesus a ensinar-lhe tudo o que ela sabia sobre
a Bondade e o Perdão.
Pronto. Foi a loucura completa: as
renas, os duendes, os gnomos e as fadas, todos, em coro, num feroz ataque de
riso, humilharam-no. Um dos gnomos, retirando o chapéu e fazendo uma vénia, em
tom de galhofa diz que ele deveria estar a ficar meio doidinho. Santa Claus, o
bom velhinho, achou por bem “enfiar a viola no saco” e calar-se.
Madalena, que tudo tinha escutado,
inconformada por ninguém levar a sério o que fora dito, ainda pensou em fazer
algo para as tentar convencer, porém, desistiu da empreitada, aninhando-se
junto ao crepitar do fogo.
Noite alta. Ao aproximar-se a hora em
que todas as crianças devem estar a dormir profundamente, Santa Claus, o bom
velhinho confirma que os trenós estão carregados com milhões de presentes,
depois, vira e revira os olhos várias vezes para verificar se as renas estão a
postos, se estão alimentadas, se levam mudas de roupa para o caminho. Será uma
viagem rápida, a volta ao mundo deve ser feita em poucos minutos, porém, como
se sabe, a inconstância da temperatura exige trajes adequados para cada setor
do globo terrestre. Garboso, toma assento no trenó principal, aquele que tem Madalena na dianteira, na liderança, e,
em pé, comunica que aguarda apenas que a estrela mais brilhante anuncie que
chegou a hora de embarcar para o momento mais importante do ano, aquele que
trará alegria ao coração de milhões de crianças.
Dito isto, um clarão dourado corta a
respiração de todos, os olhos encaminham-se para o Céu constelado e, num ápice,
uma estrela arisca rompe o firmamento, ouve-se ao longe o bimbalhar de uns
sinos e aquilo que parece ser um choramingar infantil.
Madalena, a rena que nunca fala, a rena da bondade,
a que ajuda a todos nos momentos mais difíceis, a que divide o alimento, a que
auxilia os mais fracos, a que conforta os que sofrem, a que anima os que estão
tristes, a que é só coração, pela primeira vez abre a boca e diz numa única
frase:
- Nasceu o menino Jesus! Vamos. Temos
muito trabalho pela frente.
E ela, determinada, com uma força nunca
vista, com graciosidade e altivez, eleva-se, numa arrancada firme e cheia de
propósito. Deixando atrás de si, como um rasto, por todos os lugares por onde
passa, um tapete de flores coloridas que lhe saem das patas.
*
Comentários
É escritor? Tem um livro sobre Saramago?
Está à venda em Portugal?
abraço
http://silenciosquefalam.blogspot.pt/
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