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Ouvindo Beethoven




Ouço o aroma do teu espírito. Porém, a primeira vez que te divisei, meu Deus, foi em 1973, quando o meu avô Manuel me levou a casa de um amigo, em Santos. Recordo-me desse momento como se fosse exatamente agora, passo a passo, palavra a palavra. Cerro os olhos, por instantes, e consigo ver a capa daquele vinil.

A Quinta! Quando os acordes invadiram os silenciosos minutos que nos indicavam surpresas, juro, arrebentou-se-me a Razão, estilhaçada, em migalhas. Nunca, até ali, naqueles meus oito anos de vida, tivera certezas do porquê existir.

Tantas foram as águas que passaram por entre as pedras do meu rio, uma infinitude excelsa de emoções auditivas, porém, nada se compara àquele momento, secundado por um coro de anjos, amparado por um deslumbrante sol que se apresentava por entre batentes. O eco da voz do meu bem-aventurado predecessor dizia-me, melodiosamente, de que fibra eras feito, de que útero provinhas, que Sol te beijava as mãos.

Os metais, ah… Os metais. Os sopros. O impacto estrutural de cada movimento fez-me sentir vontade de voar, qual anser indicus sobre as nuvens. É uma obra admirável em todos os gabaritos. A Sinfonia nº 5 em Dó menor Op. 67, também conhecida como Sinfonia do Destino, ou A Quinta, é uma composição vaticinadora, um instante irrepreensível na História da Música.

Os três primeiros andamentos são arranjados para um arquétipo instrumental que nos remete a outros compositores, creio que, assim feito, em tom de homenagem, porém, é no final do terceiro andamento que Beethoven deixa declinar lentamente a tessitura até estabelecer um encadeamento que beira a música de câmara, onde, subliminarmente, vai reduzindo toda a trama, até surgir, impavidamente apenas um fio condutor, que raia a loucura do soberbo. Obrigando a Obra a sustentar um quarto andamento que nos atinge com uma extensão próxima à sinfónica. Nesse instante, percebemos a magia do acrescento de cinco instrumentos, que criam um tecido sónico esplêndido, fazendo-nos sentir a divindade do compositor.

Três trombones, um contrafagote e um flautim transformam-se na alma da composição, oferecendo-nos um corte com o lugar-comum, iniciando, assim, a grande reviravolta na História da Música.

A Sinfonia nº 5 em Dó menor Op. 67 (a Sinfonia do Destino, ou A Quinta) é, com certeza, uma das composições mais conhecidas e executadas de todo o repertório da música erudita, uma Obra composta em tonalidade menor, possuindo uma conformidade orquestral exemplar.

Quatro movimentos que se exprimem através de uma consonância entre todos os naipes, conseguindo, ao mesmo tempo, ser um modelo de variação.

Passamos de um estado de tensão, causado, principalmente, pelas cordas, rasgando os céus, num dramatismo acentuadíssimo, para uma extensa solenidade, quase em cadência lutuosa, arriscando sonâncias de alta excelência e comoção, até escarrapacharmos a nossa emotividade, nos dois últimos movimentos, que se exprimem através de um grande hino ao júbilo e ao esplendor.

Alguns estudiosos defendem que Ludwig van Beethoven (1770-1827) se insuflou, na conceção da extinção da vida humana, com a escuridão do fim a aproximar-se de cada ser, numa passada lépida, fazendo com que uma catadupa de emoções e desesperos tomassem conta de cada um de nós, ao percebermos a vida a esvair-se. Creio, que é a maior, e melhor, ode à morte que alguém poderia escrever. Superior, infindáveis vezes, ao melhor dos réquiens.

Será, essa composição, uma consideração sobre o estado perecível do ser humano? Se o for, com certeza, ao mesmo tempo, afirma-nos que, embora sendo fátua, a nossa vida é um assombro.

Em 2020, a Humanidade deverá focar-se na comemoração dos 250 anos de Beethoven, para isso, já existe uma programação, em diversos países, principalmente na meca da Música Erudita, a Alemanha.

Consta que a Beethovenfest, em Bonn, repartirá centenas de concertos entre a primavera e o outono (calendário europeu).

Para ilustrar a magnitude da comemoração, a Sociedade BTHVN, fará a promoção de 250 eventos, cujo tema será, obviamente, Beethoven. Serão 30 milhões de Euros disponíveis, revertidos, na íntegra, para a grande celebração.

A Sinfonia nº 5 em Dó menor Op. 67 (a Sinfonia do Destino, ou A Quinta) estará, certamente, em muitas salas, não só da Alemanha, e eu, com certeza, não perderei a oportunidade de adentrar alguma, levando comigo, em pensamento, o meu querido avô Manuel, bem como aquele seu bom amigo, culpados pela conversão de uma alma.

Comentários

Unknown disse…
Que forma maravilhosa de fazer com que vá de imediato ouvir a QUINTA! Obrigada. Beijinhos!
luisa margarida disse…
ESPERO Q A GULBENKIAN FAÇA JUS A ESTE GRANDE COMPOSITOR!
Unknown disse…
Perfeito! Viagem numa sintonia na perfeita harmonia da tua dissertaçao da obra do genio

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