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Casa de sonho

 


Esta manhã, a minha filha perguntou-me como é a casa dos meus sonhos. A inquirição interessou-me, mais pelo lado lúdico do que por uma questão material. Pelo que pude perceber, esse tema está a ser debatido em sala de aula, e pode ter uma conotação muito interessante, relacionada com o Ser e não com o Ter. Embora, à primeira vista, pareça exatamente o contrário.

Depois de pensar uns minutos, respondi-lhe que a minha casa de sonho é quase simples. Fica na praia da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro; é do tamanho do coração dos que, verdadeiramente, amam a vida, e possui dois pisos. No rés-do-chão temos uma entrada com o formato de uma guitarra clássica, uma cozinha, uma despensa, duas casas de banho, uma sala de convívio, uma sala de jantar e um simpático corredor com quadros em ambas as paredes, no primeiro andar encontramos quatro quartos, uma biblioteca, uma fonoteca, uma sala de estar, duas casas de banho e um grande e largo corredor repleto de esculturas; do lado de fora, vê-se um espampanante jardim (ao redor de toda a construção), e, nele, muitos jacarandás, árvores de frutos variados, dezenas de arbustos e inúmeros canteiros com múltiplas espécies florícias, tudo apadrinhado por um escrupuloso enxame de dóceis abelhas. Num detalhe, sempre húmido, do relvado, o que julgarão serem várias gelatinas pegajosas, na realidade são inumeráveis polvos, encaminhando-se para a boca de uma estreita caverna, esculpida por mãos pequenas, de fadas lilás, qual aranhas tecedeiras; a um recanto, repousa uma piscina oval, onde, à esquerda, se banha, permanentemente, Turco, o elefante, e, à direita, jaz despojado um estiloso submarino amarelo; correndo por todos os lados, “selvaticamente meigos”, diversos gatos, cães, lagartixas, centopeias e pavões, porém, para descanso dos mais sensíveis: não há galo.

A propriedade é cercada por um muro mediano, e possui um portão vermelho trabalhado em ferro forjado, cujo motivo é um extenso campo de morangos, campo de morangos para sempre. Numa reentrância abobadada, airoso, cuidado por duendes saídos de uma Inglaterra vitoriana, assenta um coreto triangular, onde se apresenta, aos domingos, a Banda dos Corações Solitários do Sargento Pimenta. Reza a lenda que esse grupo andou entrando e saindo de moda, mas é falso, pois desde sempre garante levar um sorriso a todos aqueles que acreditam na fantasia, no inimaginável.

Para refrescar a memória dos incautos, existirá, em local estratégico, uma cascata. Dela, além da água em abundância, teremos, a nadar contracorrente, diversas espécies de peixes-palhaço, das estirpes que, de quatro em quatro anos, desgraçam um país nas urnas.

Todo o jardim é entrecortado por passeios em pedra, porém, é no percurso do caramanchão (carregado de flores do céu, ervilha roxa coral, madressilva do cabo, e flor do pelicano) que a vista se enche de alegria: entrevemos, ao olhar para o lado esquerdo, imagens sidéreas de raras orquídeas, bonsais balsâmicos e samambaias perenes; do lado direito apresenta-se, com uma entrada formosa, costurada por uma hera jasmineira, um borboletário, dividido em duas enormes áreas, o telado (onde estão as plantas hospedeiras que receberão os ovos) e o laboratório (recinto onde os zigotos eclodem).

A cada anoitecer, uma suave brisa se pronunciará, entre diáfanos acordes, através da Sinfonia nº 9 (em ré menor, opus 125, Coral), para que a natureza perceba que é chegada a hora do recolhimento.

Assim sendo, finalizando a explicação dada à minha filha, a casa dos meus sonhos não é apenas um lugar para viver. É a intensa representação da utopia mais íntima de um Beethoven (1770-1827), de um Monet (1840-1926), de um Friedrich Schiller (1759-1805) e de um Beatle.

“A arte é a mão direita da natureza. A última só nos deu o ser, mas a primeira tornou-nos homens.”

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