Fazia frio. Algumas pessoas
caminhavam serenamente pelas vias próximas, num ir e vir de afazeres diversos.
Casacos ajeitavam-se. Mãos eram sopradas, para alívio das articulações, porém,
pouco durava o aconchego. O rapazola levantara-se da cama em honra ao galo que
cantou a plenos pulmões, despertando os seus sentidos em direção a uma paixão
juvenil. Um encontro fortuito, acoberto de olhares fugidios, entre tábuas de
janela rasa.
Dois goles de café e meio pão
com manteiga. Dentes escovados. Cabelo penteado. Jeans justos às pernas, sapatos de bico fino, casaco de couro sobre
t-shirt branca cravejada com a
estampa dos Quatro Cavaleiros de Liverpool.
Já perto da casa da amada, os
dedos vascolejam o cabelo rebelde, deixando-o ainda mais revolto.
Ao entrar na desejada rua reparo
que a circulação não era a habitual. Um sinal de que algo fugira da cansativa
rotina de todos os dias. Olhares apreensivos, esgares, lágrimas, movimentos
negativos com a cabeça. Uma pequena multidão prostrara-se diante da porta dos
desejos juvenis.
Olho para o azul esmaecido, de
um céu que transmitia mensagens incontestadas. Pareceu-me ouvir Camilo Castelo
Branco (1825-1890): “Estava morta, por tanto… e morta sem balbuciar uma
palavra! Como se morre assim? Dizem que a morte é a aniquilação da matéria… mas
aquele anjo morreu dentro em si, antes que os sintomas da destruição nos
revelassem o rápido dilacerar daquela morte! Quem dirá que aquela mulher sofreu
no corpo? Ninguém! A alma, só a alma, este ser imortal que foge do mundo, onde
a vida do amor lhe falta; a alma, reconcentrada no seu mistério de dores
inconcebíveis, relutando por estalar as algemas que a prendem ao cavalete do
corpo… a alma, e só a alma, meu amigo, consumou aquele trance de inconfortável
inferno, e passou ao mundo da penitência ou da glória…”.
Nunca mais. Duas palavras muito
penosas para a juventude. Senti cada letra no coração, como flechas de fogo
atiradas por um Cupido expulso do Paraíso.
Percorri a rua, de um extremo
ao outro, uma centena de vezes. Contrastando com a horda acabrunhada que se
mantinha firme, na ânsia de ver a prova do triste desenlace. O ser humano é
mórbido. Satisfaz-se com a desgraça alheia. O seu sentir é dúbio, chora mas no
fundo regozija-se. Falta do que fazer, de educação e de cultura.
Aproximei-me por diversas vezes
da soleira da porta, ao meu passar abria-se e fechava-se uma clareira, como se
fosse o volteio de uma dança.
De repente, a modesta ventana
abre de par em par. Uma calejada mão coloca uma vela no parapeito. Rumores de
contrição ecoam em lástima precoce. Um ancião traz uma braçada de flores.
Deposita-as no chão, nos baixios da janela.
Olho em redor, a multidão
ocupava os dois lados da rua. Repentinamente, um velho carro aproxima-se em
reduzida velocidade. Estanca a menos de dois metros da porta da casa onde um
dia a luz refletiu por sobre as sombras. Do
seu interior sai uma modesta padiola.
A minha voz interior repetia
Jung (1875-1961): “Até onde conseguimos discernir, o único propósito da
existência humana é acender uma luz na escuridão da mera existência”. Era uma espécie
de prece, que dirigia a quem, no infinito, no além, quisesse ouvir e atender ao
meu pedido: que o véu da morte não tivesse coberto a jovem que era a minha
candeia. Simples assim. Sendo a mais nova da sua família não seria justo para
com o próprio planeta, pois os rebentos devem existir por décadas, para
frutificar e repovoar.
Subitamente a porta abre-se.
Surge nova clareira entre a multidão. Fiquei paralisado. Dois corpulentos seguram
a carrela. Instintivamente, quando passam diante de mim exijo que parem. Surpresos,
obedecem. Sem meias medidas aproximo as mãos do lençol e, com a calma de um
monge, destapo-lhe o rosto.
Quarenta e três anos depois
ainda ouço a sua voz, a silabar suspiros de amor.
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