Quem
conhece ou esteve, pelo menos uma vez, na Lagoa de Óbidos possui, certamente,
inúmeras e excelentes recordações. As minhas são, além de distintas, muito
remotas.
Nesta
folha arrojo-me e revivo uma que me traz à memória o meu avô Rui Mateus
(1899-1956).
Segundo
um antigo relato de minha mãe, este homem alto, espadaúdo, delicado nos gestos
e educado na fala - que nunca levantara a voz para ninguém e jamais erguera a mão
para algum dos quatro filhos, fazia com que tudo seguisse em conformidade, no
ritmo de sua voz, poderosa e bem acentuada – não perdia uma oportunidade para
conviver com os amigos.
De
vez em quando, o domingo era passado fora de casa, em tertúlias, nas Caldas da
Rainha, em Óbidos, na Nazaré, ou em outra localidade próxima. Porém, em certas
ocasiões, na primavera ou no verão, o local escolhido para o convívio era o
Braço da Barrosa, na Lagoa de Óbidos.
Era
uma época diferente (entre os anos de 1930 e 1956), as amizades eram solidificadas
com honestidade, e a palavra possuía um peso incomensurável. Porém, havia um
problema.
Os
meus queridos leitores, que viveram o período indicado, devem recordar-se do
perigo que eram as confraternizações em locais públicos. A Polícia
Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), protetora feroz do Estado Novo
(1933-1974), acreditava que qualquer folgança popular era motivo para uma
revolução contra o Governo. E, como Caldas da Rainha sempre foi uma terra de
bufos, era muito delicado falar sobre política com quem não se confiava.
Rui
Mateus, e o seu grupo de amigos, quando optavam por uma ida à Lagoa de Óbidos
faziam-no por dois motivos: Poderem falar à vontade acerca dos assuntos mais
pertinentes relacionados com a política de então, e passar bons momentos, em salutar
e revigorante pescaria.
O
Braço da Barrosa exercia algum fascínio ao grupo de Rui Mateus. A lenda
espraiava que o seu nome era derivado de uma enorme quinta ali existente, e
que, a sua adjacência integrava as dádivas iniciais da Rainha D. Leonor de
Lencastre (1458-1525) ao venerando Hospital Termal de Caldas da Rainha. Aquele
era um local de enorme formosura e placidez, onde era possível deleitar-se com
uma visão paradisíaca - praticamente uma reserva natural - repleta de fauna e
flora muito diferenciadas.
Quando,
naquele tempo, a rapaziada passava o dia em folgazã e festiva harmonia, a
pescaria corria melhor, pois, não raro era o instante em que as linhas se
retesavam, tendo na outra ponta do caniço um vistoso robalo.
O
final do dia - depois de muita galhofa, e muito peixe no balaio de vime de cada
um (ou no enorme passaguá de Rui Mateus) - era passado a admirar a desmesurada
e matizada irmandade de aves, das mais variadas espécies: Maçaricos-reais,
ostraceiros, garças-reais, garajaus, patos-reais, garças-brancas-pequenas, flamingos,
gaivinhas-de-bico-preto e garças boieiras, tudo numa consonância difícil de
reconhecer atualmente, porque a abundância de espécies já não é o que era.
Aquelas
pescarias, aprazíveis e descontraídas aproximaram pessoas, uniram famílias,
emolduraram uma época. A Lagoa de Óbidos - a última das três imensas lagoas num
raio de cinquenta quilómetros, reconhecidas desde o período neolítico (2000
-2500 a. C) - ficou na minha alma através do amor do meu avô por ela. O
sentimento dele por aquele local era idêntico ao de Ramalho Ortigão (1836-1915), levado à estampa no volume I das
Farpas: “à Lagoa de Óbidos não falta senão uma cintura de jardins, e de
habitações de luxo, para ser tão bela como alguns lagos célebres do norte de
Itália”.
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