Francisco Calisto adentrou a
Porta da Vila. Ia a caminho de casa. Vinha cansado, com as botas cheias de
terra e o estômago a pedir alimento. A sua rotina era metódica: Chegava,
deixava a água da bica escarrapachar-se em si, lavando-o merecidamente, vestia
uma roupa limpa, sentava-se para jantar, e saía, rumo aos lampiões que acendia,
religiosamente, todo fim de tarde. Sim, Francisco, além de agricultor, era o
Acendedor de Lampiões de Óbidos e de A-da-Gorda. Executava o serviço com
lentidão, mas com alegria, no lombo de um muar.
Era um período de muitas
dificuldades no plano social e ele, devido ao contato diário com as populações
de Óbidos e de A-da-Gorda, conhecia-as com profundidade. Essas localidades eram
de expansão agrícola, e o comércio resumia-se a meia dúzia de vendas (pequenas
mercearias) e tabernas.
A agricultura, natural e
familiar, era o ganha-pão da maioria dos habitantes. Quem não possuísse uma boa
dúzia de enxadas, e as mãos calejadas, “não era filho de boa gente”.
Francisco, alegre, expansivo e
sempre bem-disposto, gostava de confraternizar com a família e com os amigos
próximos, que eram muitos.
Durante o outono e o inverno,
era natural um maior recolhimento por parte dos moradores locais. Na primavera,
as janelas eram abertas de par em par, para que as casas recebessem o frescor
característico daquela quadra, e, claro, para as flores darem o ar da sua graça
nos parapeitos.
Já no verão tudo mudava de
rosto, com as constantes visitas dos parentes que viviam em outras terras, bem
como, com a chegada de estrangeiros, que vinham desbravar caminhos e arejar
ideias. Não eram muitos. Mas, o suficiente para descontrolar a pasmaceira, e
abalar o jeito campesino de estar, de cada residente.
Foi numa manhã de estio que
chegou a Óbidos, vinda em barulhento carro de bois - e instalando-se na casa
defronte da moradia de meu bisavô Francisco – uma jovem, e linda, moça, de
cabelos rebeldes, que deixou um rasto de admiração por onde passou. O frenesim foi
tão intenso que duas dúzias de moradores amontoaram-se nas proximidades para a
admirar.
A casa pertencia a um velho tio
de meu bisavô, logo, este, possuía privilégios e, entre eles, o de dispor de algumas
informações sobre a senhorita.
Algumas senhoras, em febril
coscuvilhice, correram ao encontro de Francisco, montadas em lombo de burro.
Depois de boa cavalgada, chegaram ao extenso campo, onde o bom homem deixava
cair o suor do rosto, cada vez que erguia e abaixava os braços acostumados ao
exercício musculado daquele ginásio natural.
Em gritos de extensa
preocupação, as impacientes senhoras saltaram dos animais e, em célere passada,
abordaram o afável homem, atirando-lhe um vasto leque de perguntas acerca da
“estrangeira”.
Francisco Calisto era um homem prudente,
pouco dado a indiscrições. Vendo o tanto de trabalho que ainda o aguardava,
pinçou o relógio, guardado no pequeno e apropriado bolso, e olhou para as
horas. Estava preocupado com os afazeres. Admirando calmamente os ávidos e
sedentos olhos que o inquiriram, viu-se na contingência de ter de falar, para
calar.
Com a educação que trouxe do
berço, e mascando uma folha de cidreira, velho hábito, adquirido de seu avô materno,
lançou um olhar de ternura e afirmou:
- Aquela senhora é italiana.
Importante pintora de quadros. Vai ficar em Óbidos enquanto durar o verão.
Agora, com licença, pois, os figos e os pêssegos não são assim tão pacientes e
necessitam de quem os colha.
Diz-se que foi um verão de
variadas pigmentações e bálsamos trescalantes. Sei, também, que uma certa casa
possui meia-dúzia de distintas e deslumbrantes acquarellas, fruto de mãos de delicado saber.
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P.S.: Imagem "Famiglia Borsatto"
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