Avançar para o conteúdo principal

O meu avô Manuel e a taberna do Antero




Repondo a História, fazendo Justiça: Caldas da Rainha, dos finais do século XIX até, quase, ao ano de 1995, era uma cidade repleta de tabernas.

O meu avô Manuel, filho de Francisco Calisto e Cecília de Paulo, tinha três irmãos (Francisco, Joaquim e Mapril) e uma irmã (Cacilda). Esta irmã cresceu, casou (com Bernardino) e teve filhos (José, Maria, Nazaré e Antero). Cacilda, sendo a sua única irmã, era a menina querida dos seus olhos.

O meu avô sempre foi um homem de trabalho, e um amparo familiar, e, como era um homem de visão comercial, teve uma vida equilibrada e próspera.

Graças a essa estabilidade conseguiu ajudar a família. Nesse auxílio está uma generosa oferta ao sobrinho Antero no ano de 1957.

Antero era um jovem e modesto agricultor no Pinhal (Óbidos), sem nenhuma perspetiva de mudar de profissão. Porém, numa certa tarde, o meu avô vai buscar o sobrinho e leva-o para as Caldas da Rainha. O destino era um singelo beco na área central da cidade. Em lá chegando, Manuel Calisto, literalmente, retira as trancas a uma grossa porta de madeira, abrindo-a para trás. Já lá dentro, com a claridade vinda da rua a alumiá-los, diz-lhe exatamente:

“Antero, a partir de hoje não vais mais cavar a terra. Dou-te esta taberna para explorares. Tem quatro mesas, cadeiras, um balcão e dois barris. Já falei com o meu compadre João Carlos Domingos, terás vinho, para servir a copo, durante um ano, por minha conta. O vinho, em copo de três, vende-se a quatro tostões. Vamos arranjar-te, também, alguns petiscos, pois a casa só com vinho não se aguenta. O que me dizes?”

Antero, depois de pensar alguns segundos, hesitou, mas, Manuel Calisto não era homem para indecisões: “Antero, a chave é esta. Começas amanhã. O negócio é teu. E, como não tens meio de transporte, hoje mesmo dou-te uma bicicleta.”

Durante os primeiros meses, Antero fazia, diariamente, com “aquela máquina”, o percurso do Pinhal até às Caldas da Rainha.

O meu avô, entre outras ramificações comerciais, possuía o amanho das terras que, atualmente, vão da rotunda da Enforcada (“O Êxtase de Santa Teresa”) até ao edifício onde está o Pingo Doce, dali retirando toda uma variedade de frutas, verduras e legumes, mandando, espontaneamente, entregar, todos os dias, ao sobrinho Antero, uma boa quantidade daqueles produtos.

Outra benesse de Manuel para com o sobrinho, foi o oferecimento diário de peixe fresco, vindo diretamente das mãos da Sra. D. Isaura, vendedora cuja banca ficava situada na parte baixa da antiga praça (curiosidade: Quando se desmontavam as barracas de madeira, eram todas guardadas no quintal ao lado da casa de pasto Mimosa).

A taberna era pequena, mas, com o passar do tempo foi ganhando uma clientela fixa. Seis meses depois de começar a funcionar, o Antero e a mulher (Olímpia) vão morar numa casa arrendada pelo meu avô, no Bairro da Ponte, ali ficando algum tempo.

Quando o estabelecimento completou o primeiro ano de vida, Manuel chamou o sobrinho à parte e anunciou: “Tens uma boa freguesia. A partir de agora, as despesas são todas por tua conta. Se precisares de alguma ajuda, aqui estarei, como sempre.”

Em 1958, assim que Antero assumiu sozinho o negócio, colocou um enorme pau de loureiro à porta, e um garrafão, de vidro verde, empalhado, pendurado à entrada. Manuel Calisto torceu o nariz à “modernice”.

Havia, na taberna do Antero, no meio da freguesia diária, aqueles que iam “dar de beber à dor”, por causa disso, nos primeiros meses, até o fado se ouviu ali. Mas, esta história fica para outro dia…
----

P.S.: Na imagem: Manuel Calisto (1909-2000).

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Um jardim para Carolina

Revolucionária e doce. O que mais posso dizer de ti, minha querida Carolina? Creio que poucos extravasaram tão bem, tão literariamente, tão poeticamente, as suas apoquentações políticas. Vivias num estado febricitante de transbordamento emocional, que o digam os teus textos – aflitos – sobre as questões sociais ou, no mais puro dos devaneios sentimentais, as tuas observações sobre a música que te apaixonava. O teu perene estado de busca pelo – quase – inalcançável, fazia-nos compreender como pode ser importante a fortaleza de uma alma que não se verga a modismos ou a chamamentos fúteis vindos de seres pequenos. E por falar em alma, a tua era maior do que o teu corpo, por isso vivias a plenitude da insatisfação contínua. Esse espírito, um bom daemon , um excelente génio, que para os antigos gregos nada mais era do que a Eudaimonia , que tanto os carregava de felicidade, permitindo-lhes viver em harmonia com a natureza. Lembro-me de uma conversa ligeira, onde alinhava

Obrigado!

  Depois de, aproximadamente, seis anos de colaboração com o Jornal das Caldas, chegou o momento de uma mudança. Um autor que não se movimenta acaba por cair em lugares-comuns. O que não é bom para a saúde literária da própria criação. Repentinamente, após um telefonema recebido, vi-me impelido a aceitar um dos convites que tenho arrecadado ao longo do meu percurso. Em busca do melhor, o ser humano não pode, nem deve, estagnar. Avante, pois para a frente é o caminho, como se costuma dizer, já de modo tão gasto. Sim, estou de saída. Deixo para trás uma equipa de bons profissionais. Agradeço, a cada um, pelos anos de convívio e camaradagem. Os meus leitores não deverão sentir falta. Mas se por acaso isso vier a acontecer, brevemente, através das minhas redes sociais, saberão em que folha jornalística estarei. Por enquanto reservo-me à discrição, pois há detalhes que ainda estão a ser ultimados. A responsabilidade de quem escreve num jornal é enorme, especialmente quando se pr

O Declínio das Fábulas - I

  Em poucos dias, o primeiro volume do meu novo livro “O Declínio das Fábulas” chegará a todas as livrarias portuguesas. Esse tomo reúne uma série de temas que reverberam o meu pensamento nas áreas da cultura, da arquitetura, da mobilidade, etc. para uma cidade como Caldas da Rainha. O prefácio é de autoria da jornalista Joana Cavaco que, com uma sensibilidade impressionante, timbra, assim, o que tem constituído o trabalho deste que vos escreve. Nele, há trechos que me comoveram francamente. Outros são mais técnicos, contudo exteriorizam um imenso conhecimento daquilo que venho produzindo, por exemplo: “É essa mesma cidade ideal a que, pelo seu prolífico trabalho, tem procurado erguer, nos vários locais por onde tem passado, seja a nível cultural ou político. Autor de extensa obra, que inclui mais de sessenta livros (a maior parte por publicar) e um sem fim de artigos publicados em jornais portugueses e brasileiros, revistas de institutos científicos e centros de estudos, entre o