Numa época muito remota, devo
ter feito parte do imaginário obidense, tal é a identificação que sinto com
aquela região.
Apesar de toda a minha família
paterna ser dali originária, sinto que o que me liga à região é muito mais o
que vivi em décadas passadas, do que aquilo que provém de consanguinidade.
Uma certa noite, corria o ano
de 1985, na cidade do Rio de Janeiro, estava a dormir profundamente quando
tenho um sonho singular.
Dias depois, recebo a visita de
meu avô Manuel Calisto e, como era habitual, levei-o para almoçar na Confeitaria
Colombo, um dos ícones do encanto do início do século XX, e da boa gastronomia
carioca.
Ainda durante os acepipes,
depois de falarmos sobre a família que estava em Portugal, a de Santos, etc., lembrei-me
de lhe contar o meu sonho, por deveras curioso: Um jovem, com uma aparência
modesta, de calças em tom acinzentado, camisa branca e sapatos castanhos, jazia
sentado numa grande pedra, rodeada de inúmeros arbustos e árvores, e mirava,
atentamente, um Castelo altaneiro.
O meu avô pousou os talheres,
olhou-me fixamente, e pediu-me para repetir, mas, desta vez descrevendo a
personagem. Com calma o fiz, “não esquecendo uma única vírgula”. Depois de
alguns minutos, ainda com aquele olhar embebido em profundidade canónica, diz-me
somente isto:
- Esse rapaz, sentado na pedra,
é o meu pai. Acabaste de descrever uma situação que, em alguns domingos,
especialmente na primavera, gostávamos de fazer. Sentar naquela pedra, depois
de uma grande caminhada, beber muita água fresca, comer boa fruta da terra, e
admirar o Castelo de Óbidos. Essa rotina trazia-nos a sensação de que fazíamos
parte de algo muito grande. Fazendo-nos acreditar que a Terra poderia ser o
próprio corpo de Deus.
Admirei-me, com tudo,
principalmente pelo teor religioso da fala, pois o meu avô não era dado a
revelações desse tipo. Fiquei surpreso, também, com o possível significado do
sonho. A conversa, então, desenrolou-se, estendendo-se por elucidações
minuciosas acerca do local onde a tal pedra assentava. Espontaneamente apostei
num dos meus blocos de notas todas as descrições, além das possíveis
referências para encontrar o local e, até, qual o melhor momento de um
primaveril dia para ter a mesma sensação, a mesma energia que, aproximadamente
sessenta anos antes, os aspergia.
Os anos passaram, dezasseis
para ser mais exato. Numa “manhã de sol e bom humor” saí de Lisboa com o
intuito de encontrar aquela pedra. Estacionei o automóvel num recanto com muita
sombra, perto das muralhas do Castelo e, munido de boa água, muita fruta
sumarenta, e excelente disposição para caminhar, iniciei um percurso de sonho.
Na minha mente adormeciam emoções, entre elas, via, a espaços ternurentos, a
imagem afetuosa do meu querido avô Manuel. Faltava ali a sua palavra canora,
qual canto de pássaro, que, em primaveril instante, perfumasse o ambiente.
E caminhei durante horas.
Admirei verdes recantos. Contemplei, de diversos pontos, o Castelo sobranceiro.
Sonhei com passados remotos, com lutas medievais, com conquistas da realeza. Vislumbrei
o meu bisavô Francisco, pai do meu avô Manuel, sentado algures, numa pedra
enorme, a admirar o entorno e a percutir com o olhar naquelas muralhas
maltratadas (sim, porque na sua época elas estavam muito danificadas).
Passei um dia maravilhoso. E,
depois desse, tantas e tantas vezes ali regressei. Porém, para a “minha
tristeza e o meu desconsolado outono”, nunca consegui ver a tal pedra. Alguns
parentes dizem que deve ter sido implodida, outros acham que a natureza a deve
ter coberto.
Se já não existe, culpo a
ferocidade humana, pelo estrago. Se existe, e está “guardada” entre refolhos
verdes, aguardo um sinal do Infinito, um indício que me permita subir a esse
recanto paradisíaco, para ter a graça divina de admirar Óbidos, a nossa
princesa do coração!
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