Há momentos em que o pensamento
foge na direção da melhor cidade do mundo. Fui muito feliz no Rio de Janeiro, e
espero voltar a sê-lo. Uma urbe que transpira cultura, que verte de suas
artérias uma seiva abundante no que trata ao Teatro, ao Cinema, às Artes
Plásticas, à Dança, à Música, etc.. Uma metrópole tão impactante que
transforma, integralmente, a nossa alma, e o nosso modo de ver o planeta, com
as suas nuances estético-culturais.
De entre as centenas de horas
que conto, muitas delas foram vividas na Cidade Maravilhosa a observar, a
sentir, e a palmilhar diversos caminhos relacionados com a cultura. Posso
referir, no correr da pena, inúmeras alegrias que a arte daquela urbe me proporcionou,
tanto como elemento da plateia quanto como homem do palco, mas não o farei.
Deixarei, apenas, a escrita resvalar para uma determinada tarde, plantada num
dia muito distante, do ano de 1983: A primeira vez que vi a Jarra Beethoven, de
autoria de Rafael Bordallo Pinheiro (1846-1905).
Confesso que, daquele impacto
recebido nunca me restabeleci. Tal a magnitude da obra.
No espaço desta crónica, não
irei explanar sobre o artista, muito menos dar contributos alongados sobre a peça
em questão. Limitar-me-ei a chorrilhar algumas frases de encantamento, que é o
mesmo que dizer: Deixarei a alma falar, no divagar das sensações e das
avassaladoras imagens que me vêm à mente.
Quando entrei no proeminente
salão do Museu Nacional de Belas-Artes surpreendi-me com o entusiasmo do
artista, ali representado num artefacto de quase 3 metros de altura (incluindo
o pedestal, este com 1,18cm), preludiado numa folha de partitura, com as notas
iniciais do Quartet, nº 4, Opus 14, executadas por quatro instrumentistas,
alcandorados numa sinuosidade da peça. Em seguida, os olhos resvalaram para o
medalhão com a efígie de Rafael, o autor, indo ao infinito, nos baixios, onde
saltam as palavras “Melodia” e “Harmonia”. Tudo alegoricamente envolvido com
ramagens, e dissemelhantes estaturas relativas à música.
Admirando-a com minúcia,
percebemos a boca decotada e ampla, com perímetros desiguais, gargalo extenso e
adelgaçado, abdómen limitado, estreitando em direção à peanha. As configurações
simbólicas que a completam apresentam-se em circunlocuções desiguais e
díspares, declarando-se, portanto, representativamente rococó. Uma excelente
homenagem a Ludwig van Beethoven (1770-1827).
A sua execução data do final do
século XIX, e, em entrefolho apropriado, ostenta esta valiosa e reveladora
informação: “Caldas da Rainha. Portugal / Fábrica de Faianças. 1895 / Começada
em 9 d’agosto. Acabada em 16 de setembro. Raphael Bordallo Pinheiro”, a
autenticar a procedência e a autoria.
A Jarra Beethoven, que completa
cento e vinte e cinco anos neste 2020, já não é alvo de um estudo circunstanciado
desde a publicação da investigação de Marize Malta, doutora em História Social
pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professora da Escola de
Belas-Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), no ano de 2010. O
que me parece pouco, para uma obra assinada pelo caricaturista, e cerâmico,
português, que tanto frisson causou em
tempos idos.
A peça (que demorou a adquirir
o epíteto de obra de arte) ainda não é compreendida pela maioria dos
historiadores de arte, sendo olhada de viés, às vezes acusada de mero objeto de
decoração, outras vezes indiciada como ser inanimado sem categoria estética.
Seria diferente se fosse
assinada por Luca della Robbia (1400-1482), Benvenuto Celini (1500-1571) ou
Bernard Palissy (1510-1589)?
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