Em tenra idade,
conheci uma jovem oestina de longos cabelos castanho-claros, olhos cor de
amêndoa, pele delicada e voz perfumada.
Em poucas semanas
tornámo-nos inseparáveis. Uma amizade extrema. Concreta. Pontilhada com trechos
de Victor Hugo, Balzac, Eça e Machado de Assis. Devorávamos livros e discutíamo-los
com fervor. Passámos a respirar o pó das bibliotecas. Mas não era só isso que
fazíamos nos tempos livres.
Graças à
excelência do caminho-de-ferro da época, em domingos que poderiam ser
pasmacentos, rebelávamo-nos e “fugíamos” para Lisboa. Passeávamos de mãos
dadas, beijávamo-nos longamente à beira Tejo. E, antes do indesejado regresso,
íamos ao Cinema Império, na alameda Afonso Henriques, ou ao São Jorge, na
avenida da Liberdade, para assistir ao filme do momento.
Os nossos olhos
eram críticos a tudo, especialmente aos ridículos bigodes masculinos, às roupas
mal cortadas e pouco modernas de algumas jovens senhoras, e, principalmente, às
retinas que nos observavam de soslaio, provavelmente com inveja da nossa
espampanante felicidade.
Achávamo-nos
“moderninhos”, com vestuário inspirado nos londrinos anos 60. O meu penteado
era “à Beatles”, com o nariz a exibir pequenos e redondos óculos escuros “à
Lennon”, e da boca pendiam frases entrecortadas de expressões típicas dos
Quatro Cavaleiros de Liverpool. Ela achava o máximo. Nas suas veias também corria
o bom e velho Rock’n’roll, embora, por inúmeras vezes, em determinadas
ocasiões, em minha casa, passássemos longas horas a ouvir Beethoven, J. S. Bach
ou Mozart.
Quando a
conhecera, o 25 de abril de 1974 acontecera apenas seis anos antes e, apesar do
ar de liberdade, sentia-se uma velada censura. Os jovens não podiam ser jovens,
deveriam “estar em sentido para a dureza da vida”. Eu e ela não pensávamos
assim, a diversão era o nosso lema.
A alegria, e a
vontade em explorar os caminhos da arte, levavam-nos a exposições pictóricas
nas mais diversas galerias, bem como a deliciosos momentos musicais, porém,
numa ensolarada tarde, ao adentrarmos a sala principal da Gulbenkian, talvez
devido à dourada luz do ambiente, aquele lindo rosto brilhou de tal modo que
não resisti em beijá-lo “ruidosamente”. Ela, friamente, e constrangida por
termos chamado a atenção, mergulhou profundamente nos meus olhos e, num
sussurro de acordar a múmia de um faraó, disse-me: “Está ali o Dr. José
Henrique de Azeredo Perdigão. Vamos cumprimenta-lo”. Fui apanhado de surpresa.
Pela primeira vez, depois de meses de convivência, ela conseguira calar-me. E,
o pior, silenciando os meus atrevidos beijos.
Fomos, branda e
progressivamente, ao encontro do homem (naquele momento, um respeitável senhor
de 84 anos de idade) que realizou os desejos de Calouste Gulbenkian. Depois do
aperto de mãos e de, aproximadamente, dez minutos de conversa, despedimo-nos.
“Formam um belo casal. Nunca percam a ternura”, foram as suas últimas palavras.
Jamais esqueci a sua gravidade e carinho.
Às vezes o rosto
e a voz daquela jovem vêm-me à memória. Os portugueses e os galegos dizem que é
saudade. Esse estado de alma, nostalgia ou morriña,
não pertence apenas a alguns eleitos, mas certamente é melhor entendido pelos
que amam. Sim, provavelmente foi amor.
Um ano depois
daqueles maravilhosos dozes meses, ela foi “obrigada” a acompanhar os pais para
o Canadá. Há alguns anos soube que ainda lá estava e que, apesar dos quase
sessenta anos de idade, mantinha a beleza de outros tempos. A alma, com
certeza, também deve ser a mesma: rebelde e meiga, ternurenta e cativante.
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