Todos os dias vestimos a roupa
que mais agrada aos outros. Frequentamos os lugares que nos indicam. Bebemos o
que nos impingem em insalubres propagandas. Dizemos palavras que, na realidade,
deveriam estar sempre silenciadas, por terem sido pensadas por mentes alheias à
nossa. Resumindo: Vivemos para fora. As redes sociais, e o que os outros pensam
de nós, vieram biblicamente alçar-nos a qualquer coisa de inútil.
A vontade dos outros, sobre a
nossa, desmanchou-nos a alma interior.
Recuperar a nossa identidade, a
nossa voz, a nossa consciência, é um trabalho exaustivo, penoso, quase
impossível. E, será que o gostaríamos de fazer?
A síndrome do alheio abastece-nos
de tal modo que confundimos a realidade da vida com a virtualidade das redes.
A maioria das pessoas,
atualmente, acorda nervosa, irritada, destilando fel e arrogância. Como são
vítimas da veleidade absorta, a primeira coisa que fazem, ao saltar da cama, não
é dar continuidade à leitura de um livro, é, lamentavelmente, mergulhar os
olhos pelas redes sociais, perscrutando o vazio que os outros destilam sem
cessar, devido, justamente, à improficuidade das suas ações e pensamentos.
Johann Goethe (1749-1832)
disse-nos que “O declínio da literatura indica o declínio de uma nação”. Neste
momento virtual (obscuro) que vivemos, ler é um exercício tão difícil quanto
correr uma maratona. Infelizmente, devido às nossas más práticas, absorvemos o
que há de pior no pensamento humano, entregando à humanidade as mais tolas
frivolidades, os mais débeis pensamentos, as mais patéticas ações.
O que poderia engrandecer-nos? Investir
no nosso cérebro; na bondade que, se desejarmos, trazemos nos gestos; na
alegria que possuímos na alma (e que não deixamos vir à tona); na mão que
podemos estender a quem necessita. Temos de conseguir regressar ao mundo real,
pois as práticas virtuais resumem-se (e atiram-nos) a uma insignificância
inacreditável, a uma decadência enquanto humanidade.
Ser, versus parecer. Vida
(quase) pública, versus vida íntima. Ao analisar o comportamento humano
lembro-me do conto “O Espelho”, de Machado de Assis (1839-1908), escrito em
1882. Nele, o Bruxo do Cosme Velho explana acerca da nossa alma externa, e da
conexão desta com o estatuto e a influência social, a
impressão que os outros fazem de nós, etc., situações e factos que colidem com
a nossa alma interna (a nossa verdadeira personalidade), rigorosamente (devido
ao nosso parcial apagamento do mundo real), o que provoca os conflitos que abalam
o planeta nos tempos que correm.
Ser o outro representa nada
ser. Levando-nos a um caminho de ganância, arrogância e destruição do entorno.
As consequências são gravosas, a maior de todas é a da letargia cerebral, que
pode ocasionar a perda do raciocínio, da capacidade de pensar. E, assim, passarmos
a viver mortos, zombies, ignavos,
perfeitamente manipuláveis, dando voz a indivíduos regidos por interesses estranhos
e dissimulados, cúmplices de todos os conflitos.
Como disse o meu querido
Quincas Borba: “Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações não chegariam a
dar-se, pelo motivo real de que o homem só comemora e ama o que lhe é aprazível
ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza uma ação
que virtualmente a destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as
batatas”.
Nos tempos que correm, sem a
prática da boa leitura, a subsistência deixa de ser racional. Não existirão
vencedores. E as batatas… serão produzidas em FarmVille.
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