É tarde. As ruas estão
desertas, porém, há ruídos desagradáveis embalando o ambiente. Cicios vindos de
lúgubres gargantas. Rumorinhos de insalubres agitações emocionais.
Repentinamente uma ave estranha e anafada atravessa o ar, num voo rasante e
desordeiro, como se pretendesse um fígado para alimento. Procurei o rochedo e
não o vi. Prometheu não mora aqui.
Avanço por entre caminhos onde
um dia existiu vida sã, talvez a mesma cultivada por Epimeteu e por seu irmão,
porém a vista nada alcança, é breu o destino desta humanidade.
Desde o roubo do fogo dos
Deuses que Zeus, enfurecido, castiga-nos. E nós, pequenos mortais, sem aceitar,
com humildade, o erro, elevamos o olhar e ainda o desafiamos. Prometeu jaz
acorrentado à velha montanha, e as ruas desta cidade, urbe castigada pelo tempo
- e por atitudes políticas que a ferem mortalmente - vai esvaziando a
possibilidade de dar abrigo a Hefesto. O futuro será vil nestas paragens.
Apresso o passo. Desejo aninhar
os meus pensamentos entre os seios de Pandora. Refúgio. Tugúrio de liberdade e
abrigo de dons.
Quanto mais veredas percorro,
mais alto ouço os estrépitos desconfortáveis que cortam a atmosfera. Esta terra
não é minha.
Para Nietzsche (1844-1900)
“Zeus quis que os homens, por mais torturados que fossem pelos outros males,
não rejeitassem a vida, mas continuassem a se deixar torturar. Para isso lhes
deu a esperança: ela é na verdade o pior dos males, pois prolonga o suplício
dos homens”.
O que ausculto, nada mais é do
que o martírio pelo qual o ser humano está a passar. Ouvidos mais imprudentes poderiam
pensar tratar-se de doces cantos de sereias. Desventurados, seriam devorados
por elas.
Já não há guerreiros solertes,
perspicazes e hábeis. Não há capazes para construir um cavalo, e abrigar nele
os fortes. Não há sequer necessidade de grandes elucubrações mentais para
obrigar a que os portões da cidade sejam abertos sem derramamento de sangue,
pois não há portões, e, se os houvesse, estariam guardados por bailarinos
políticos, cuja força é tão exígua quanto a sua coragem.
Ao vagar por estas ruas
desertas, a esta hora da noite, noto a gritante falta de uma narrativa
homérica. Não há heróis, também. O que me leva a refletir, mais uma vez, que
esta não é a minha urbe.
Ao perpassar trajetos não
encontro Penélopes a tecer, e destecer, tapetes. Há apenas, a horas novas, um
esgrimir de línguas entre coscuvilhices, cujo resultado é sempre aberrativo,
pois nunca reverbera verdades. São os novos tempos? Guerras de intrigas não são
aprazíveis.
Entre passos, deixo o
pensamento vagar na direção da minha padroeira. Somente ela pode tirar-me desta
proximidade com as entranhas dos que guerreiam sem saber o motivo. Ulisses
demorou vinte e sete anos a volver ao tabernáculo. Para mim já cessaram vinte e
dois.
Que Nossa Senhora do Monte Serrat e Ulisses
(Odisseu) nos protejam.
“Nenhum homem ou mulher, nascido covarde ou
corajoso, pode evitar o seu destino”. (Homero, 928 a.C.-898 a.C.).
É reconfortante sentir necessidade de regressar a casa. É revigorante o bálsamo que é o sossego do
lar.
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