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Raul Proença

 

A história de um concelho pode ser anunciada como motor impulsor do turismo se as Câmaras Municipais investirem na preservação do património cultural material que possuem. O que não acontece nas Caldas da Rainha.

“Não é fácil dialogar com os proprietários” é a frase-lema dos autarcas, quando os imóveis a serem intervencionados pertencem a privados. O curioso é que, na maioria das vezes, por parte dos edis, as tentativas para a conversa não existem.

Há, no concelho caldense, um absoluto descaso quando se trata de reparos, melhoramentos ou manutenção de imóveis de interesse histórico-cultural, bem como no que está relacionado à estatutária local. Um dos casos mais gritantes gira em torno da figura de Raul Sangreman Proença (1884-1941).

Em 2024 completam-se os 140 anos do seu nascimento e a casa onde nasceu, situada no Largo João de Deus, nº 10, está em precário estado. O hilário é encontrar – de total responsabilidade camarária – o monumento erigido em sua homenagem também num lamentável desleixo.

As minhas reclamações acerca da degradação dos monumentos urbanos de Caldas da Rainha não são de hoje, basta correr os olhos por dois outros artigos, publicados neste mesmo periódico, para o comprovar (CALISTO, Rui. “A estatuária urbana das Caldas da Rainha”. In.: Jornal das Caldas. Caldas da Rainha, ano XXVI, nº 1353, 11 de abril de 2018, Escaparate, Opinião, p.29 e CALISTO, Rui. “Monumentos ao abandono”. In.: Jornal das Caldas, Caldas da Rainha, ano XXX, nº 1576, 20 de julho de 2022, Opinião, Escaparate, p.28.). A negligência em que esse património se encontra mostra o pouco interesse político nos artistas e na arte local. E é Caldas da Rainha uma Cidade Criativa? Como isso é possível? A quem a Câmara Municipal está a pagar para manter esse estatuto?

Saberão os políticos do burgo quem foi Raul Proença? Será que a vereadora da (pouca) Cultura, em algum momento da sua vida, leu algum texto escrito por esse senhor? A bibliografia ativa de Proença é muito interessante e atual (foi, por exemplo, um conhecedor profundo de Friedrich Nietzsche (1844-1900) e o resultado dos seus estudos acerca deste autor está bem estampado num excelente volume em dois tomos), o que valoriza grandemente o concelho caldense, contudo, os atuais autarcas não a devem conhecer, dificilmente leram uma mísera linha da mesma, nem possuem a mínima ideia do que compõe o seu conjunto.

Raul Proença destacou-se no cenário cultural português como filósofo, jornalista, escritor e bibliotecário (Chefe dos Serviços Técnicos da Biblioteca Nacional de Lisboa). Não se limitou, todavia, ao estudo de temas e à publicação de livros, pois o seu espírito democrático fê-lo combater o Sidonismo em 1918 e a Ditadura Militar em 1926. A sua crítica construtiva batia-se contra dois vícios da República: o compadrio e a corrupção (se vivesse hoje seria mais um a engrossar as fileiras contra esses males, que permanecem tão visíveis).

Foi graças ao seu ímpeto e arraigada vontade de libertar o país das garras da opressão, que acabou condenado ao exílio (ocorrido em Paris entre 1927 e 1932). Esse infausto acontecimento levou-o a graves problemas de saúde, do foro psiquiátrico, porém, o que o matou - aos 57 anos de idade, numa cama do Hospital Conde de Ferreira, na cidade do Porto – foi causado pela bactéria Salmonella Typhi.

Uma preciosidade: o arquivo histórico desse nosocómio possui o Passaporte Diplomático deste eminente intelectual (que deve ser desconhecido da maioria dos caldenses), um documento muito interessante e de alto valor histórico.

Raul Proença é merecedor de inúmeras homenagens, muito oportunamente em 2024. As três maiores serão: a edição de sua Obra Literária, na íntegra; a recuperação arquitetónica da casa onde nasceu e a limpeza do monumento anteriormente citado. Duvido que isso venha a acontecer, a curto e médio prazo.

Que no próximo ano, os autarcas não o homenageiem com discursos ocos e sensaborões, como é habitual nessas ocasiões. Calarem-se será uma prova de inteligência.

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