Nesse
ano em epígrafe, em Lisboa, o Rei D. Manuel II (1889-1932) estava sentado no
trono português, para onde ascendera após o assassinato de seu pai, o Rei D.
Carlos (1863-1908) e de seu irmão D. Luís Filipe (1887-1908). Fernando Pessoa
morava num quartinho modesto, situado no Largo do Carmo, nº 18, 1º esquerdo, e
passava os dias trabalhando como tradutor de correspondência comercial. Júlio
Dantas lançava “Outros Tempos”, onde explanava acerca dos inquéritos médicos às
genealogias reais portuguesas, das casas de Avis e Bragança, discorria sobre o
que fora o século XVIII neste território e pincelava notas curiosas sobre modas
e episódios do período romântico.
Tudo
muito urbano e distante do Portugal pequenino de outras plagas.
Óbidos
era, então, uma vila erma e tristonha, dentro das muralhas do Castelo. Uma Praça-forte
muito combalida, com mostras avançadas da inexcedível gastura provocada pelos
anos que passaram, sem o mínimo de conservação.
Numa
das residências existentes no interior da vila, a 6 de fevereiro do dito ano,
nasceu o meu avô Manuel. Seu pai, Francisco, agricultor e acendedor de lampiões,
sua mãe, Cecília, uma sacrificada dona de casa.
Manuel
era um rebento de sorte, pois, apesar das dificuldades financeiras que
assolavam a população, a sua família possuía algumas posses, graças a um bom
punhado de terra agrícola produtiva (fora das muralhas), possuidora de
considerável pomar e souto, vastíssimo cultivo de hortifrutigranjeiros e um
frondoso, e secular, pinhal.
Dentro
da vila as crianças faziam o costumeiro banzé, por causa do jogo da bola (com
um esférico feito de trapos, enrolado numa meia velha e rota), do joguete da
apanhada, ou do lançamento e recolha do pião, completamente distantes do burburinho
social e político que ocorria na Capital.
Se
chovesse brincavam à mesma, nada os fazia parar, a não ser um ralhete de um dos
progenitores ou de um vizinho mais irascível. As roupas eram pouco fidalgas, os
sapatos, praticamente nenhuns. Cães e gatos passeavam-se livremente, fazendo
todas as estripulias que podiam, não havia porta ou janela fechada, a não ser à
noite ou no inverno. Comum era cruzar-se o caminho de cada um com uma récua de
bestas de carga, cansados muares acostumados à lide dura, ou grandes fatos de
cabras ou, até, varas de porcos. A vida por aqueles lados, apesar de inúmeras
fragilidades sociais, era muito prazerosa, com a excelsa sensação da existência
de dias longos e as belas noites de céu estrelado, sem artifícios, sem barreiras.
Manuel,
recém-nascido, por aquele ano ainda não sabia o que era o berlinde, o pião, a
bola ou o livro. O mundo estava a abotoar-se diante de si, casa a casa, tudo
num encaixe perfeito, sempre imaculado, pois o amor era o ingrediente
fascinante que norteava a família. A sua, a minha, a de tantos de nós que
viemos durante e depois.
Óbidos
permanece ali, o meu avô Manuel está mais além, naquele lugar onde os
super-heróis são de verdade, e os contos-de-fadas são vividos antes de serem
sonhados na Terra.
Fecho
os olhos e imagino-o no colo de Cecília, sob o olhar intenso de Francisco,
junto à soleira da porta, daquele casario gracioso, de paredes caiadas, e um
vasto decote de amores-perfeitos à beira das janelas.
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