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O meu bisavô, a harmónica e o Grilo




Bem no início do Século XX, Francisco Calisto, meu bisavô paterno, comprou uma harmónica. Não possuía nenhuma intimidade com ela, porém, após um dos seus grandes amigos, o Grilo, mostrar-lhe o instrumento, apaixonou-se, por completo, pela sua sonoridade.

Ambos, todos os dias, por volta das 9 horas, na primeira pausa da manhã, na lide agrícola, dividiam a degustação do farnel com o entretenimento que aquele objeto lhes proporcionava.

Contou-me o seu filho Manuel (meu avô) que bastaram poucas semanas para o pai tocar melodias muito bem alcançadas, todas de própria inspiração.

Aquela harmónica - baseada no Sheng chinês, funcionando pelo princípio de palhetas livres (duas placas), retangulares, de metal, assentadas sobre uma encorpadura em forma de trempe de madeira, com uma versátil, e singular, riqueza sonora - tornou-se uma companhia diária para Francisco.

O seu grande amigo Grilo (já desenvolvi diversas incursões pela terra obidense, para tentar chegar aos descendentes deste senhor, mas, ainda não obtive um bom resultado) foi, sem dúvida, um exímio professor.

Sei, através de depoimento familiar, que nas noites de lua alta, sentado na soleira da porta, ou numa cadeira de palha trançada, Francisco envolvia toda a Vila de Óbidos numa perene nostalgia.

Esse instrumento, apesar da sua aparente simplicidade, está relacionado com grandes acontecimentos mundiais, alguns pouco recomendáveis, como a Guerra Civil Americana. Era natural os soldados sentirem necessidade de trazer a Arte consigo, afinal, somente ela consegue desentorpecer as mentes e acalmar as angústias. Depois, com o passar dos anos, foi sendo utilizado como acompanhamento em músicas folclóricas, marchas e hinos, chegando, num ápice, à Música Erudita, aproveitado em diversas gravações e concertos de sopro e cordas.

Porém, foi no Blues americano que a harmónica seguiu um caminho de reconhecido sucesso - graças à sua classe vocal de timbre africano, o lamento e o carpido dos cortadores agrícolas – fazendo-a atingir uma perfeita reprodução sonora.

Esse instrumento, com o passar dos anos, foi sendo enriquecido, especialmente na casta das palhetas e dos bocais, dando um salto qualitativo no naipe de vozes, tanto o simples quanto os oitavados ou as sonoridades trémulas, evoluindo muito, inclusive, nos tipos diatónico e cromático.

Francisco, creio, nunca imaginou qual seria a importância da harmónica no nosso Planeta. Inclusive, passou-lhe ao largo o quanto foi, e é, apreciada, e utilizada, pelos mais diferentes géneros musicais.

Chegou, ainda segundo relatos familiares, a ser um excelente instrumentista, ultrapassando, em muito, o insigne Grilo.

O seu gosto pela música foi transmitido ao seu filho Manuel (meu avô) - um dos fundadores da União Filarmónica de A-da-Gorda (em conjunto com 18 outros companheiros), no dia 6 de janeiro de 1949 – que dedicou largo tempo ao mesmo instrumento (harmónica), bem como à flauta de Bísel, flauta de Pan e ao clarinete, no sopro, passando, também, para o cavaquinho e o bandolim, ambos do naipe das cordas.

A Arte foi uma constante em alguns elementos da minha família paterna, porém, não teve início com o meu bisavô Francisco, a sua harmónica e um Grilo. Para chegarmos à sua origem, temos de voltar as atenções para os meandros do Século XVII. Mas, isto é outra história. Como tantas, que ainda há para contar.

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