As manhãs de folgança, nos
domingos de primavera, eram aproveitadas de diversos modos, por exemplo, com a
organização de tonificantes picnics,
numa patusca sombra, próximo às águas do Arnoia. Francisco Calisto era um homem
feliz.
Segundo relatos familiares, ele
sabia que aquelas águas nasciam na serra de Todo o Mundo, a 250 metros de
altura sob o nível do mar - esta serrania localiza-se na convergência dos
Casais da Serra, na freguesia do Landal, nas Caldas da Rainha e das freguesias
de Alguber, Figueiros e Painho, já no concelho do Cadaval.
O local escolhido para estender
a toalha, e amatilhar os alimentos, era próximo da confluência com as águas que
vêm do rio Real - nascido no alto da serra do Montejunto, a uma elevação de 600
metros, exatamente no zóster do Moinho do Céu, situado na freguesia do Vilar,
concelho do Cadaval.
Apesar de parecer um local de convulsão,
devido ao encontro de águas, não o era, pois - como se domado fora pelas mãos
magnânimas do Alto – espraiava-se subtilmente, alegrando, com o seu riso de
suaves escumas, as duas margens. Porém, num repente, cerca de trinta metros
adiante, um alerta da natureza fazia com que aquelas águas se manifestassem
fortes, chegando à Lagoa de Óbidos com a ternura dos leões indomáveis.
O repasto, naqueles picnics, eram fartos e diversos, porém,
sem o cuidado alimentar deste seu bisneto. O que significava que, sobre a
toalha, achavam-se, também, os petiscos resultantes de derivados das carnes de
vaca e de porco. Mas, segundo notas íntimas, o que sobressaía eram os queijos e
as frutas da época.
Enquanto, anos depois, o meu
avô materno, Rui Mateus (1899-1956), elegera um recanto da Lagoa de Óbidos para
as suas pescarias, enaltecendo toda a adrenalina que delas resultava, este meu
bisavô paterno, Francisco Calisto, preferia o sossego das margens do Arnoia,
para acalentar a alma intersecta e o corpo cansado, após uma semana de
extenuante faina agrícola.
Os picnics eram o pretexto para juntar a família e os amigos, num
longo dia de recordações. Francisco era um homem bucólico. Os seus gestos
acolhiam, a sua palavra acalmava, e a sua alma distribuía. São inúmeras, as
histórias acerca do apoio que dava a terceiros, inclusive, no que trata às
grandes safras que saíam de suas terras, distribuídas pela família, pelos que
com ele trabalhavam, e por aqueles que, dos mais variados quadrantes, em
Óbidos, necessitavam.
Sempre que penso nos
convescotes que Francisco realizava, nos finais do século XIX, início do XX,
lembro-me do quadro “The Picnic”, de autoria de Thomas Cole (1801-1848), onde
vemos um animado grupo de convivas, entre adultos e crianças, que aproveitam a
beira-rio; a verde e primaveril relva; as árvores, de diversas espécies, a
transpirar saúde e sombra, e a segurar, em inúmeras saliências, alguns chapéus
de senhoras; um pequeno barco, com um rapaz apoiando uma das mãos à margem
próxima; um distinto cavalheiro, a dedilhar um instrumento de cordas; o Sol,
que não aparece, mas, mostra-se em luminosidade de fim de tarde; a alva toalha;
dois cestos de palha, repletos de iguarias; um rapaz a servir um vinho tinto (ou
será um aromático licor?); um jovem mancebo que, semiescondido, esculpe,
provavelmente com uma pequena navalha, um qualquer vestígio seu, para a
posteridade; e a atmosfera, que refulge a satisfação de estarem vivos e de
poderem desfrutar de toda aquela opulência, oferecida, gratuitamente, pela
generosa natureza.
O cenário nessa tela não é
idêntico ao que Francisco elegera, nas margens do Arnoia, mas, com certeza,
porém, a ambiência poderia traduzir-se semelhante, bem como, o que ia na alma
de cada personagem.
Faltam-nos, hoje, esses
momentos. Escasseiam os gestos e as palavras sinceras. O rio lá está, mas, com
que ternura ou fervor lhe correm as águas? Se estiverem como a alma humana,
estão confusas, perdidas num inacreditável tumulto entre o Ter e o Ser. Paz
Eterna, a todos de Boa Vontade!
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