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A memória dos objetos do quotidiano

 


Recentemente, como faço quando a saudade bate forte, detive-me a admirar alguns objetos familiares muito antigos como, por exemplo, a minha coleção de louça. Peças que pertenceram a diversos ascendentes e, algumas, com mais de trezentos anos.

A história traz-me memórias subtis, remetendo-me a pensamentos alumiados pela luz da candeia que existiu nas casas dos meus antepassados.

Levando a idade daquelas peças ao pé da letra, estamos a falar dos anos de 1700 a 1799. Ou seja, numa época em que ocorreram alguns acontecimentos significativos em determinados pontos do planeta, entre eles, a Revolta dos Sobas em Angola; a Embaixada da China enviada a Portugal, em sinal de estreitamento de relações (curiosamente, os chineses ofereceram sessenta caixas com preciosidades, entre estas, sete magníficas pérolas. Onde será que se encontram?); o violento sismo que abalou todo o Algarve (do cabo de São Vicente a Castro Marim, provocando enormes estragos em Tavira, Faro, Loulé, Portimão e Albufeira); as ocorrências que em meados daquela centúria - sobretudo entre 1750 e 1800 - abalaram o planeta, infestando-o de revoluções, foi um ciclo repleto de efervescências sociopolíticas, que ocasionou o início, no Ocidente, de inúmeros desassossegos, em sua larga maioria atribuídos à propagação das reflexões que cunharam o Iluminismo; Etc.

Se atentarmos a outros enredos históricos, lembramo-nos que aquela modesta e simples louça caseira, sem qualquer ostentação relacionada à nobreza, foi utilizada no mesmo período de vida dos seguintes monarcas: D. Pedro II, o Pacífico (até 1706), D. João V, o Magnânimo (de 1706 a 1750), D. José I, o Reformador (de 1750 a 1777), D. Pedro III, o Edificador (de 1777 a 1786), D. Maria I, a Piedosa (de 1777 a 1816) e durante parte da Regência de D. João VI, o Clemente (de 1799 a 1816).

Aqueles pratos, vasilhas, terrinas, etc., foram ouvintes atentos das frases que se diziam dentro das casas onde serviram utilitariamente aos mais diversos membros das ramificações Mateus, Patriarca, Santos e Calisto, os meus ramos genealógicos e, agora, prostrados em vitrinas ou pousados em estantes, assistem, pasmaceiramente, ao passar calmo dos dias, a ouvir récitas de poesia ou acordes dos mais inimagináveis géneros musicais.

Dentre os inúmeros objetos que guardo religiosamente há um, de um ano não muito distante (1979), que me traz outro tipo de recordação impressionantemente bela: o programa do Ballet da Ópera de Paris (na época sob direção da imensa Violette Verdy (1933-2016)), do espetáculo “La Belle au bois dormant” (A Bela Adormecida), com libreto de Marius Petipa (1818-1910), música de Piotr Tchaikovsky (1840-1893) e coreografia de Alícia Alonso (1920-2019), exibido no Teatro Nacional de S. Carlos.

A minha relação com a história, com a memória dos objetos, nada mais é do que uma certeza de que eles carregam em si traços de afetividade, que podem explicar muito do dia a dia e da biografia de quem os possuiu, colaborando, até, em consequência, com a construção da nossa própria personalidade.

Tudo ao nosso redor - especialmente os objetos que utilizamos - possui uma carga simbólica e é admirável como, ao praticarmos um pouco de arqueologia do quotidiano, conseguimos perceber que os nossos pertences pessoais funcionam como um receptáculo dos nossos sofrimentos ou das nossas alegrias, pois ao admirarmos algo que pertenceu a um antepassado, os nossos sentidos ficam em alerta.

Nietzsche (1844-1900), ao dizer a seguinte frase: “Logo que, numa inovação, nos mostram alguma coisa de antigo, ficamos sossegados”, estava, unicamente, a pedir para não desprezarmos o passado, podendo antes utilizá-lo como base para a construção de um futuro, com respeito pelas pessoas, e pela história de cada uma. Nada mais do que o apontamento biográfico da Humanidade. 

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