Avançar para o conteúdo principal

Impressões de 1907

 

Matthew entra na estação do Rossio, na mão direita o bilhete para Caldas da Rainha, na esquerda o volume “Notas de Viagem – Paris e a Exposição Universal (1878-1879)”, de Ramalho Ortigão. O seu intuito é, somente, o de rever a Vila, que é afamada graças às Termas e, quem sabe, aproveitar um pouco daquelas águas para debelar alguns incómodos respiratórios, reumáticos e músculoesqueléticos. O enredo do livro levara o seu pensamento a desejar a França, contudo, os seus parcos recursos não o autorizavam a tanto.

Quando ouviu o silvo da máquina, apressou-se a subir os pequenos degraus da carruagem e a acomodar-se confortavelmente. Quinze minutos depois percebeu que não conseguiria esquadrinhar o relato de Ramalho, a paisagem não o permitiria. Completamente envolvido pelas cores deixou-se entreter, imaginando como poderia fazer bem, aos seus pulmões, caminhar por aqueles campos. A brochura foi parar à algibeira. Os olhos passaram a perscrutar o entorno, completamente extasiados.

A visão à sua frente associou-se a uma certa revivescência mental sobre o Parque D. Carlos I. Lembrou-se, então, do engenheiro e arquiteto Rodrigo Berquó que ergueu seis belos pavilhões naquele recinto, com o intuito de ali instalar o Hospital Real (em homenagem a esse erudito monarca). Obra que alçaria o burgo caldense ao topo das mais afamadas estâncias termais europeias. Recordara-se, também, de uma alva discussão do célebre Berquó com o descomedido Rafael Bordalo Pinheiro, e de como se odiavam.

Subitamente, as retinas regressaram ao prazer do panorama. A viagem mostrava-se calma, o percurso era o melhor que se poderia ter para a época. Os caminhos de ferro em Portugal estavam num bom momento, o país era bem “cortado” e viajava-se entre extremidades com algum conforto e muita segurança. Sentiu vontade de agradecer a António Maria de Fontes Pereira de Melo, o criador do Ministério das Obras Públicas e grande impulsionador das ferrovias nacionais, contudo, limitou-se a observar o cenário, pois aquele visionário estava morto há muito.

A carruagem apresentava-se muito composta, esse meio de transporte era tão importante e concorrido quanto as vias romanas na Antiguidade.

De repente, embebido em recordações, lembra-se do gracejo que lera, em tempos algo remotos, num dos periódicos de Bordalo: “Foi assim que os Pontos nos ii, na pessoa do seu diretor – e apesar de vacinados – também foram atacados da epidemia, ao ponto de se permitirem jardinar no último domingo, aproveitando o gracioso convite para a experiência da linha férrea de Lisboa às Caldas da Rainha. E que formosa é essa linha! O aspecto dos túneis, a elegância das pontes, o pitoresco dos caminhos, um conjunto delicioso da arte e da natureza, e, sobretudo isto, a velocidade da jornada, que nos surpreende e nos encanta, mormente quando nos lembramos daquelas estropiadoras noitadas de Azambuja às Caldas, aos solavancos, aos boléus, às cambalhotas, moídos, picados, amassados, como se a nossa alma estivesse condenada a eternas penas e o nosso corpo destinado a uma travessa de croquetes (…) O povo das Caldas não mostrou positivamente um grande assombro à chegada do comboio; parece-nos até que já o vimos mais assombrado duma vez que chegava a diligência do Funileiro. Quem visse a indiferença com que aquele bom povo assistiu à aparição dum caminho-de-ferro entrando-lhe pela primeira vez portas adentro, ficaria para logo convencido de que esse bom povo nunca fizera outra coisa na sua vida senão ver entrar caminhos-de-ferro pela porta dentro. Parecia que, em vez de águas termais, aquele povo nunca tomara senão águas férreas.”

E, com o correr das reminiscências, alguns momentos de sonolência e o atropelo dos pensamentos, o simpático Matthew foi percebendo que estava a chegar ao destino.

O comboio silva. A paragem é lenta e lírica, com dezenas de senhoras a descer à gare e a exibirem os seus emplumados chapéus, e os senhores, esses, a baforar caros charutos e a conjeturar sobre o movimento, que é fatigante, porém, irá piorar, pois El-Rei D. Carlos I ainda não está em época de banhos.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

A arte de Paulo Autran

  Um dos amigos de quem sinto mais saudades é esse Senhor, cujo nome está em epígrafe. O seu percurso profissional mistura-se com a história do teatro brasileiro. O seu talento ombreia com o das divindades dos palcos, Leopoldo Fróes (1882-1932) e Laurence Olivier (1907-1989). A sua postura era ímpar, a de um cavalheiro, praticamente um aristocrata. Estava com 25 anos de idade quando o conheci, um ser ainda imberbe. Ele, com simpáticos 68. Gigante há muito. Respeitado, cultuado, um exemplo. Era carioca, nasceu na cidade do Rio de Janeiro, numa quinta-feira, 7 de setembro de 1922. Muito influenciado pelo pai, Walter Autran (1891-1960), formou-se na Faculdade de Direiro do Largo de São Francisco, em 1945, desejando abraçar carreira na diplomacia. Não almejava ser ator, porém estreou como amador, em junho de 1947, no Teatro Municipal de São Paulo, com a peça “Esquina Perigosa”, de autoria de John Boynton Priestley (1894-1984), com direção de Silveira Sampaio (1914-1964). Infl...

Um jardim para Carolina

Revolucionária e doce. O que mais posso dizer de ti, minha querida Carolina? Creio que poucos extravasaram tão bem, tão literariamente, tão poeticamente, as suas apoquentações políticas. Vivias num estado febricitante de transbordamento emocional, que o digam os teus textos – aflitos – sobre as questões sociais ou, no mais puro dos devaneios sentimentais, as tuas observações sobre a música que te apaixonava. O teu perene estado de busca pelo – quase – inalcançável, fazia-nos compreender como pode ser importante a fortaleza de uma alma que não se verga a modismos ou a chamamentos fúteis vindos de seres pequenos. E por falar em alma, a tua era maior do que o teu corpo, por isso vivias a plenitude da insatisfação contínua. Esse espírito, um bom daemon , um excelente génio, que para os antigos gregos nada mais era do que a Eudaimonia , que tanto os carregava de felicidade, permitindo-lhes viver em harmonia com a natureza. Lembro-me de uma conversa ligeira, onde alinhava...

Arena Romana nas Caldas da Rainha

Toda a vez que ouço um aficionado das touradas destilar frases de efeito, anunciando que “aquilo” é cultura, ponho-me a pensar num excelente projeto que poder-se-ia executar nas Caldas da Rainha: Construir-se uma Arena Romana. Naturalmente seria um plano muito interessante do ponto de vista “cultural”. As Arenas Romanas estão na história devido à inexorável caçada suportada pelos cristãos primitivos. Praticamente a mesma coisa que acontece com os touros numa praça. São muito conhecidas as crónicas sobre as catervas de animais impetuosos que eram lançados sobre os fiéis indefesos, algo muito semelhante com o que se vê nas liças tauromáquicas. Um touro a mais ou a menos para os aficionados é, praticamente, igual ao sentimento romano: Um cristão a mais ou a menos pouco importa. O que vale é a festa; a boa disposição de quem está nas arquibancadas; as fortunas envolvidas, representando lucros fenomenais para alguns; a bandinha de música, orientada por um maestro bêbad...