Matthew entra na estação do
Rossio, na mão direita o bilhete para Caldas da Rainha, na esquerda o volume
“Notas de Viagem – Paris e a Exposição Universal (1878-1879)”, de Ramalho
Ortigão. O seu intuito é, somente, o de rever a Vila, que é afamada graças às
Termas e, quem sabe, aproveitar um pouco daquelas águas para debelar alguns
incómodos respiratórios, reumáticos e músculoesqueléticos. O enredo do livro
levara o seu pensamento a desejar a França, contudo, os seus parcos recursos
não o autorizavam a tanto.
Quando ouviu o silvo da
máquina, apressou-se a subir os pequenos degraus da carruagem e a acomodar-se
confortavelmente. Quinze minutos depois percebeu que não conseguiria
esquadrinhar o relato de Ramalho, a paisagem não o permitiria. Completamente
envolvido pelas cores deixou-se entreter, imaginando como poderia fazer bem,
aos seus pulmões, caminhar por aqueles campos. A brochura foi parar à
algibeira. Os olhos passaram a perscrutar o entorno, completamente extasiados.
A visão à sua frente
associou-se a uma certa revivescência mental sobre o Parque D. Carlos I. Lembrou-se,
então, do engenheiro e arquiteto Rodrigo Berquó que
ergueu seis belos pavilhões naquele recinto, com o intuito de ali instalar o Hospital
Real (em homenagem a esse erudito monarca). Obra que alçaria o burgo caldense
ao topo das mais afamadas estâncias termais europeias. Recordara-se, também, de
uma alva discussão do célebre Berquó com o descomedido Rafael Bordalo Pinheiro,
e de como se odiavam.
Subitamente, as retinas
regressaram ao prazer do panorama. A viagem mostrava-se calma, o percurso era o
melhor que se poderia ter para a época. Os caminhos de ferro em Portugal
estavam num bom momento, o país era bem “cortado” e viajava-se entre
extremidades com algum conforto e muita segurança. Sentiu vontade de agradecer
a António Maria de Fontes Pereira de Melo, o criador do Ministério das Obras
Públicas e grande impulsionador das ferrovias nacionais, contudo, limitou-se a
observar o cenário, pois aquele visionário estava morto há muito.
A carruagem apresentava-se
muito composta, esse meio de transporte era tão importante e concorrido quanto
as vias romanas na Antiguidade.
De repente, embebido em
recordações, lembra-se do gracejo que lera, em tempos algo remotos, num dos
periódicos de Bordalo: “Foi assim que os Pontos
nos ii, na pessoa do seu diretor – e apesar de vacinados – também foram
atacados da epidemia, ao ponto de se permitirem jardinar no último domingo,
aproveitando o gracioso convite para a experiência da linha férrea de Lisboa às
Caldas da Rainha. E que formosa é essa linha! O aspecto dos túneis, a elegância
das pontes, o pitoresco dos caminhos, um conjunto delicioso da arte e da
natureza, e, sobretudo isto, a velocidade da jornada, que nos surpreende e nos
encanta, mormente quando nos lembramos daquelas estropiadoras noitadas de
Azambuja às Caldas, aos solavancos, aos boléus, às cambalhotas, moídos,
picados, amassados, como se a nossa alma estivesse condenada a eternas penas e
o nosso corpo destinado a uma travessa de croquetes (…) O povo das Caldas não
mostrou positivamente um grande assombro à chegada do comboio; parece-nos até
que já o vimos mais assombrado duma vez que chegava a diligência do Funileiro.
Quem visse a indiferença com que aquele bom povo assistiu à aparição dum
caminho-de-ferro entrando-lhe pela primeira vez portas adentro, ficaria para
logo convencido de que esse bom povo nunca fizera outra coisa na sua vida senão
ver entrar caminhos-de-ferro pela porta dentro. Parecia que, em vez de águas
termais, aquele povo nunca tomara senão águas férreas.”
E, com o correr das
reminiscências, alguns momentos de sonolência e o atropelo dos pensamentos, o
simpático Matthew foi percebendo que estava a chegar ao destino.
O comboio silva. A paragem é
lenta e lírica, com dezenas de senhoras a descer à gare e a exibirem os seus
emplumados chapéus, e os senhores, esses, a baforar caros charutos e a
conjeturar sobre o movimento, que é fatigante, porém, irá piorar, pois El-Rei
D. Carlos I ainda não está em época de banhos.
Comentários
Enviar um comentário