O Senhor Teatro esteve em Óbidos, no auditório municipal da Casa da Música, com o espetáculo assinalado em epígrafe, e a minha pena, sensatamente, não poderia deixar passar em branco esse memorável acontecimento.
Escrever sobre essa fundamental
figura da Cultura portuguesa é muito gratificante, conviver com ela é uma
bênção. Não sei precisar há quanto tempo conheço Ruy de Carvalho (1927-), o que
sei é que a minha admiração foi aumentando com os passar dos anos. Essa afeição
não é apenas pelo imenso ator que é, mas também pelo cavalheiro, pela índole,
pela postura, ou seja, pelo ser humano ímpar.
Na
peça em questão – escrita pelo talento do meu, igualmente, querido amigo Paulo
Mira Coelho (1952-) – o Senhor Teatro, que divide o palco com Luís Pacheco
(1969-), faz uma peregrinação pela memória, indo buscar histórias que a família
e os amigos mais chegados conhecem há anos, e são deliciosas, muitas delas
vividas com nomes sonantes como Vasco Santana (1898-1958), Ribeirinho
(1911-1984), Canto e Castro (1930-2005), Armando Cortez (1928-2002), Amélia Rey
Colaço (1898-1990), Laura Alves (1921-1986) e Manuela Maria (1935-).
Com
encenação e adaptação de Paulo Sousa Costa (1968-), as “histórias de vida, de
amor e desamores, de humor e de carreira” desfilam soberbamente no palco, numa
interlocução encantadora com o público, chegando, quase, a ser uma conversa
fraterna entre amigos, no sofá de casa.
Como
curiosidade: uma história que Ruy de Carvalho não contou naquela noite, mas que
é graciosa, é aquela relacionada com os seus 7 anos de idade, quanto
interpretou o “mosquito”, na “História da Carochinha”:
“Senti-me
homenageado pela pessoa que me escolheu, até porque a minha mãe estava a
colaborar nesse espetáculo. Estava a ensinar a parte musical e quiseram que eu
fizesse de mosquito. Tenho uma história engraçada: a senhora que fazia de
vigia, como estava com medo que eu estivesse nervoso, deu-me uma medalha de
Nossa Senhora da Conceição para eu ter na minha mão. Enquanto estive com ela,
mordi-a. E quando entrei em cena, devolvi-a. 60 anos depois a medalha veio-me
parar novamente às mãos. Deram-ma quando regressei à Covilhã e fui à atual Casa
do Menino de Deus. Agora tenho-a comigo, em minha casa”.
Desde
o “mosquito” até agora, o amado Ruy de Carvalho vem conscientemente dominando
as técnicas de palco, no que toca aos “climas” derramados na evolução de cena,
à luz de Constantin Stanislavski (1863-1938). Construindo sistematicamente o
seu “tempo-ritmo”, “afagando” as suas personagens com a evolução - muito
própria - de um método de trabalho minucioso e exaustivo, baseado,
principalmente, numa perícia psicofísica. Genial!
Citando
o Rei Lear - interpretado pelo Ruy, naquela que foi, em anos passados, a sua
consagração como o melhor dos melhores -: “Meus olhos viraram pintores e, com
isso, esboçaram a beleza de tuas formas nas telas do meu coração” (William
Shakespeare, 1564-1616).
Essas
telas, no coração de cada um de nós, são joias de um inalcançável valor. Quem,
um dia, pôde presenciar a mística do Senhor Teatro nos palcos do país e do
exterior, inevitavelmente guardará para sempre as cores incomuns da sua bela
paleta.
Arrematando,
sempre ouvi o Ruy dizer que “a grande riqueza de um povo é a sua arca da
cultura”. A Vila de Óbidos possui, desde o berço da memória, uma população
culturalmente rica, enchendo baús com a sua sapiência e honestidade no contar,
um deleite para quem escuta. Ruy de Carvalho também é assim, uma volúpia de
ouvir.
Fica
aqui um apelo ao executivo camarário do Município de Óbidos: essa honrosa
visita deve ser eternizada no bronze. A presença, em palco, de Ruy de Carvalho,
no dia 25 de junho, deve ser imortalizada com a colocação de uma placa no foyer daquele aconchegante auditório.
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