Estávamos em maio de 1975. Em
chão lusitano havia, ainda, incómodos pidescos, medos enrustidos, palavras
arrevesadas, olhares desconfiados. Qualquer um poderia ser um bufo, com o seu
palavreado tosco, dentes arreganhados e pensamentos vazios. Seres insignificantes
e mesquinhos, usurpadores de vidas e de mentalidades. Nadas de um país que,
felizmente, já não existe. Apesar de andarem por aí pequenos filhotes, “paridos
por cobras criadas”, sempre com olhares vesgos e tentativas de opressão.
Analfabetos de razão.
Naquele mês em epígrafe vi
Óbidos pela primeira vez, e conheci familiares do ramo paterno.
O momento solene daquela minha
nova fase da vida ocorreu numa excelsa noite, em A-da-Gorda, sentado num rústico
banco de madeira, tendo ao meu lado a minha bisavó Clementina Ferreira
(1890-1977), prostrada confortavelmente numa cadeira de balanço, e com um lindo
gato amarelo e branco no colo. O silêncio era sublime, pois, todos os
familiares haviam saído, para uma caminhada reconfortante após o jantar. A
porta estava aberta, a lua alta enfeixava-se em nós através de uma claridade
rigorosa. O clima era de harmonia e excelência. Senti-me bem.
Ela, a minha bisavó, sem dizer
uma palavra, estende-me a mão direita e eu, também mudo, aconcheguei-a entre os
pequenos dedos frios da mão esquerda. E ali ficámos. Não sei por quanto tempo.
Apenas recordo a alegria que senti, pelo carinho, pelo amor, que estava a
aquecer-me.
Quando lhe apeteceu, iniciou um
módico discurso. Com aquela voz timbrada, as frases corretamente ditas eram
atiradas ao ar, numa explanação acerca das aventuras dos seus pais, avós e
bisavós por aquelas terras. O seu olhar, em doce melancolia, fitava a adiposa
lua, cuja luminosidade imensa teimava em entrar pela retangular janela e pela
já citada porta. Havia ali um misto de amor e de saudade. E eu, mudamente
prostrado, ouvia atentamente cada silabar. Até o gato (aqui sou eu a dar
merecido protagonismo ao bichano) acompanhava o ritmo das suas palavras com a
sonoridade de uma respiração melodiosa e compassada.
Não sei por quanto tempo
fiquei, embevecido, a ouvi-la. Na minha cabeça, além da sua voz, ecoavam
melodias de remotos tempos, como se tudo o que era pronunciado fosse batizado
por euritmias, em encadeamentos de sons simultâneos.
Havia um costurado bucolismo,
entrecortando as emoções que salpicavam aquele momento. Um género de poesia
pastoral, minuciando as excelências de uma subsistência familiar com muitas
décadas. Senti-me um árcade, no século XVIII, em Peloponeso, na Grécia antiga.
As sensações, em catadupa,
abalaram aquele menino de dez anos de idade. Havia, naquele encontro, a
sensibilidade de uma espiritualidade horaciana, onde a nossa extensa luz
baseava o saber estar no mais sublime da natureza. E era, apenas, um encontro
de gerações muito díspares: 75 anos de diferença entre nós.
Menos de dois anos depois, a
minha querida bisavó Clementina seguiu rumo ao Insondado. De vez em quando - no
instante em que percebo no céu uma lua como a que nos lavou a alma naquela
intensa noite – mesmo toscamente, rezo por ela. Deixando-me levar por
pensamentos quase criptológicos, onde o cerne de toda a Razão encontra-se com o
vazio dos dias que correm, tento perceber de que matéria são feitos os Sonhos,
especialmente aqueles que se mantém embalsamados à Saudade. Só encontro
resposta quando leio Kardec (1804-1869). Uma réplica que acalma e faz-me
acreditar que, afinal, continuamos…
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