Enquanto escrevo as primeiras
linhas deste artigo, o sol inicia a sua caminhada para longe do meu horizonte,
uma taça de vinho reluz na aurora da mesa, e Chet Baker (1929-1988) esvoaça por
sobre os lírios da minha imaginação, enchendo o ambiente de acordes.
Essa citada flor traz, à minha
memória, a Capela-Panteão de São Martinho.
Num tempo já distante, entre os
anos de 1320 e 1331, Pero Fernandes do Rêgo (séc. XIV), prior da Igreja de
Santiago (Torres Vedras), beneficiado da Igreja de Santa Maria Maior (Sé de
Lisboa), e vigário da Igreja da Lourinhã, manda construir, e inaugura, essa
Capela gótico-tumular no Largo de São Pedro, em Óbidos.
O monumento - edificado com o
privilégio de conter a sua frontaria voltada a Levante - possui o empeno
anguloso, encimado por despretensiosa Cruz cristã, limitado por sólidas
arestas, dispondo de um portal descentralizado do frontispício, e contendo o
filete de apoio do beirado do telhado sustentado em modilhões superficialmente
nervados.
À entrada, tanto de um quanto
do outro lado, sobre fornatos, vemos duas excelsas modelações, em pedra do
século XV, figurando a “Virgem da Maternidade” e o “Anjo São Gabriel”.
A sua nave, arqueada em
entrelaçaria de ogivas, com arcossólios transversais, arcada fracionada e pouco
adelgaçada, com ornamentação naturalista nos capitéis, representada por
diversos motivos fitomórficos, é de uma graça peculiar.
No interior, resguardados, deparamo-nos
com três túmulos, sustentando, um
deles, uma espada cinzelada.
No exterior, encontram-se dois sepulcros, ambos de
estrutura trapeziforme, com opérculo de declive repetido em albardilha,
coroados por uma cruz arrematada em flor-de-lis, possuindo, o da esquerda, a
frontaria polida, e, o da direita, cinco escudos de armas, todos já
significativamente gastos.
A Capela de São Martinho é o
singular exemplo da época Medieval da Vila de Óbidos (existente no interior das
Muralhas), sendo, inclusive, um dos mais excecionais espécimes da estruturação
gótica portuguesa, mesmo não possuindo cortes arquiteturais, ou ornamentais,
proeminentes para o aperfeiçoamento do próprio estilo, e estando arredada dos
fundamentais meios urbanos, onde a arquitetura da Baixa Idade Média mais
prosperou. É, sem dúvida, um relevante parágrafo da História da Arte de Portugal.
Curiosamente, esta memória arquitetónica, não possui vestígios de ter sido
assolada pelo terramoto de 1755.
É de notar que esta Capela, no
século XIV, não foi dotada por qualquer plano mecenático, por parte da
Monarquia, o que pode significar que a sua manutenção foi amparada
financeiramente por quem a construiu e, posteriormente, por quem a adquiriu,
neste caso, no século XV, passou para as mãos da família Lafetat (Alfaitati na
forma original), cuja reconhecida ascendência remonta a um notável ramo
originário da cidade de Cremona, no ducado de Milão. O cremonês João Francisco
Lafetat (séc. XV) comprou-a (bem como a Torre do Carvalhal) na primeira década
dessa centúria. No ano de 1913 foi, por seus descendentes, negociada com o
Visconde de Sacavém, José Joaquim Pinto da Silva (1835-1921) e, no dia 1 de
fevereiro de 1951, cedida, pelos herdeiros deste, à Câmara Municipal de Óbidos.
Recordo, com saudade, de uma
visita que fiz à Capela-Panteão de São Martinho, já lá vão 40 anos: Evoco a
serena imagem de uma balzaquiana sobraçando um ramo de lírios. A sua tez áurica
e o retinir do seu sotaque italiano ainda reverberam… Sole della mia vita,
amore del mio cuore.
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