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Da varanda da minha casa




Daqui, desta varanda onde pouso os pés, vejo, alta e prateada, uma soberba lua. A noite está silenciosa. Ajeito a cadeira, e refastelo-me com sobriedade e bom humor.

Quase não passa viv’alma. A madrugada vai alta. A rua, que de dia é febricitante, devido ao movimento humano e ao facto de ser amplamente pedonal, a esta hora esbanja um romanesco e agradabilíssimo silêncio.

Quem diria que, bem no coração da cidade, encontraria tanta paz e tranquilidade… Vital para que o coração da literatura continue o seu intenso trabalho.

Da varanda da minha casa vejo intensas cores, nas frontarias dos edifícios que me são vizinhos, embebidas num tom amarelo, atirado em romança por candeeiros diversos, de distintas épocas.

Extáticos e sérios, desperdiçando a gravidade de um olhar, estão os manequins das lojas de roupa que jazem a poucos metros. Vigilantes atentos, porém, impedidos de ventilar informações, por uma questão puramente frugal…

…Tão diferentes de alguns pseudopolíticos, que não cansam de vomitar impropérios, saídos de suas simplicidades.

Novos tempos, de uma outra PIDE, disfarçada sob um rosto diáfano de ternura e mel, levando-nos à rutura e ao fel. Sob o silêncio auspicioso de quem deveria continuar a empunhar bandeiras de liberdade.

Deixando os pensamentos esboroarem-se, observo o que me rodeia… Vejo uma coruja, enorme e bem-posta. Reparo, na mesma varanda, num jardim suspenso… Imagino como será difícil tratá-lo, mantendo-o minimamente saudável. O seu dono deve ter absurdas saudades do seu rincão florido, talvez, até, de uma infância soberba, onde a grande preocupação era acalentada pela ternura dos dias carregados de aromas campesinos.

Há, para minha arrebatada surpresa, um pio noturno, emitido, provavelmente, por algum galanteador, que na calada da noite tenta encantar uma atenta namorada. Pelo canto, parece-me um Noitibó-da-Europa, embora não acredite muito nessa hipótese, pois os maus tratos do ser humano, para com a natureza, tem-no eliminado, chegando ao cúmulo de beirar a extinção.

Repentinamente, cortando a minha paz melancólica, surge uma espampanante gaivota. Acordou cedo. Deve ser a líder, que vem reconhecer o terreno, anunciando às companheiras qual o ponto da terra, ou do mar, onde podem começar o dia. Sim, deve ser uma desbravadora e aventureira, uma beata dos ares, que, religiosamente inicia as preces para um sol que deve chegar cedo e robusto.

Mudo a direção da cadeira, aproveitando um novo ângulo, tranquilo e silencioso. Fico a imaginar os que, em remotos anos, transitaram por esta rua, em passeio, ou na labuta do dia-a-dia. Medito acerca do tempo em que aqui ainda passavam veículos recém-motorizados, ou carros-de-bois. Fixo o pensamento nas senhorinhas que aqui circulavam, em tempos em que ter trinta anos de idade representava o início da velhice.

Volto a atenção para o frescor da noite, contrastando com a canícula que assola os dias.

Há um pequeno movimento à esquerda, anunciando que brevemente uma nova alvorada principiará. Uma metamorfose impensável na política local, pois, nem hoje, nem em 2021, esta ilha plantada por sobre águas tão calmas - que atiçam a sonolência e a obtusidade - deixará o marasmo lírico em que vive (será porque os eleitores dormem sob as derrotas anunciadas, ou porque a Esquerda mantém-se na toada de ajudar a Direita a caminhar de cabeça erguida?).

Da varanda da minha casa percebo o esboroar dos ideais do 25 de abril. Resta-me o chá, e a certeza de que, em menos de sessenta minutos, esta rua ficará tão movimentada que a placidez das horas será substituída pela preocupação dos compromissos.

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