Fernando Correia - um dos mais
respeitados profissionais da comunicação social em Portugal - esteve
recentemente nas Caldas da Rainha, numa rádio local, a falar acerca do seu mais
novo livro, cujo título pode ler-se em epígrafe.
Nele, o autor que nos acostumou
- através da sua voz aveludada e bem colocada - a ouvir prazerosamente relatos
de futebol, traz-nos uma realidade emotiva, dolorosa, vivida na primeira
pessoa. Uma diegese que nos faz pensar na vida (na nossa e na de quem está ao
nosso lado), na dele e na da Vera, a personagem principal.
Fernando e Vera, dois
padecentes que não estão sós, pois tiveram filhas, e estas lhes deram netos,
seres humanos saudáveis, com corações latejantes de amor pela mãe já avó, que, infelizmente,
por ironia de um fadário ímpio, é incapaz de o perceber, de o sentir, de sequer
o sonhar.
Uma senhora que desconhece as
suas próprias emoções, com uma vida
que paira num éter nebuloso, com uma palavra que não ecoa no quarto, com um
coração que pulsa movido por um milagre autêntico (ou químico). Perceberá,
então, a solidão de sua alma? Terá noção, no limiar de onde se encontra, de que
o seu solilóquio não possui ouvintes? Haverá dentro de si um discurso solene,
dito ininterruptamente ao seu ser, para que este se mantenha vivo, naquela
neutralidade física comovente?
Vera, não é somente a ressoante
personagem desse livro, é, também, de uma vida que um dia foi. Dentro de si
existe uma distância, um abismo, onde ecoa a esperança tutelar de uma família,
a sua, que a quer para si, como deve ser, como deveria ser.
“Uns dias antes de seres
internada ouvimos muitas vozes à nossa volta a dizerem tudo o que a ignorância
permite e documenta. No restaurante, e enquanto procuravas comer a sopa à mão,
as pessoas sentadas noutras mesas riam de troça e apontavam para a testa com o
dedo indicador.”
Tenho comiseração por este
povo, que não consegue perceber o que se passa ao seu redor. “Que pena eu tenho
dos pobres de espírito.”
O “Diário de um corpo sem
memória” expõe, de modo marcante e comovente, o ritmo do coração de Fernando
Correia, em sonantes batidas, por uma alma que, em anos volvidos, o arrebatou
de amores. Um livro que patenteia, também, a necessidade que todos temos de
conhecer com profundidade o que é a doença de Alzheimer, como a podemos
identificar e, principalmente, como devemos agir quando estamos diante de um
ser humano que sofre com essa perturbação, para não fazermos figura de néscios.
Uma enfermidade atroz, que vem
devagar, sem pressa, e fica, e fica, pousa em nós na antessala do vácuo,
aguardando que o organismo lhe dê um sinal para parar, anúncio que nunca chega,
até que ele, o prenúncio, esquece-se de si próprio e avança, instala-se,
domina-nos, apagando-nos para as coisas terrenas.
Em cada página desse livro
percebemos a pequenez do que somos, diante da imensidão do desconhecido. É uma
narrativa que nos leva também a acreditar em prodígios, e a desejar que
aconteça, no estalar de um segundo, a debelação do mal; e que aquele cérebro
não tivesse sido corrompido; que aquele olhar se enchesse de luminosidade; que
ela, a Vera, regressasse a este momento, com uma lucidez desconcertante.
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