Todos os dias, à mesma hora,
ouço passos firmes sobre as pedras polidas da área pedonal defronte da minha
casa. Como é habitual, vou à varanda e observo. Gosto de vê-la desfilar. O seu
andar traz à minha memória uma época remota, um tempo carregado de sonho e
fantasia. Não sei a sua idade, nem posso, por educação, preocupar-me com isso.
Sei apenas que a sua presença faz-me recordar algumas pessoas queridas, que,
por coincidência, foram suas amigas.
Hoje não foi diferente, a boa
Senhora veio e foi, assim como o passado, que caminha inevitavelmente veloz
para um futuro insondado e enigmático.
O vestido sóbrio, a mala
discreta, o cabelo muito bem penteado, o olhar distante - talvez em busca de
alguém que os anos transatos levaram, mas que imagina poder encontrar adiante,
depois do final da vida terrena -, diria que, possuidor de inegável perspicácia
e exímia prudência.
Os seus traços são de
circunspeção, certamente alinhados com o que lhe vai na alma.
Lembro-me - era eu um rapazinho
imberbe, e ela já uma Senhora, de olhar arguto e gestos pandos – de a ouvir
conversar acerca do país de então. Encantava-se com a seriedade e a honestidade
que, à sua volta, se destacavam.
Nunca lhe ouvi uma frase tola,
uma palavra mal pronunciada, um meneio que significasse desejar aproveitar-se
de alguma circunstância em proveito próprio. Que disparidade em relação com o
que se vê nos dias que correm, onde por um “dá cá aquela palha” vende-se a alma
ao diabo.
Vejo, naquela luz que emana de
seu estético olhar, um foco muito claro. Talvez necessitasse de Immanuel Kant
(1724-1804) para examinar a faculdade do julgamento a que a submeto, porém, assim
como ele, não me baseio em sentimentos, apenas em sublimidades. E o sublime é
intemporal. É honesto. É desinteressado.
Gosto do seu ar de mistério,
muito mais impactante do que a revolução de um mar, em madrugada de temporal;
ou o ecoar de um trovão numa tarde acumulada de nuvens negras.
Aquela segurança no andar, o
olhar fulminante, a postura que demonstra saber quem é, e o que faz sobre a
Terra, podem, na realidade, esconder uma fragilidade inimaginável, uma dor
lancinante, uma nostalgia incessante.
A sua marcha sólida, aquilatada,
reflete de modo indiferente para o comum que ao seu lado se movimenta, porém,
para quem está acostumado a lidar com emoções o que salta à vista é uma alma tensa,
que habita um corpo cansado e supera, sabe-se lá como, uma mente que já não quer
perceber a abundância da existência.
Nos entrefolhos de uma vã
passada, segue, quem sabe, um martírio, ou uma revolta.
Enquanto uns gritam, sem nada
terem a dizer; outros acabrunham-se e meditam entre as filigranas de um
desditoso pensamento. São estes últimos os que melhor se ouvem.
Todos os dias, à mesma hora,
ouço passos firmes sobre as pedras polidas da área pedonal defronte da minha
casa, porém, somente hoje é que pude perceber que há um contraponto inteligente
naquelas passadas. O contorno melódico de cada uma delas e a particularidade
intervalar, cadenciada, concebida pela justaposição da “nota contra nota”,
permite-me concluir que aquela misteriosa Senhora é “amante” de Johann
Sebastian Bach (1685-1750).
O seu caminhar possui o fino
propósito de interpretar a fé na sua religião - na sua arte, no seu refletido
pensamento - na sua eterna busca: Nele, O Inexplicável!
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