Avançar para o conteúdo principal

“Poesia com Luz”

 

A fotógrafa Odete Frazão inspirou-se na poesia de Afonso Lopes Vieira (1878-1946) para compor a magnífica exposição assinalada em epígrafe, patente, desde o dia 20 de maio, na agradabilíssima Casa de Chá MOMO Sweets & Tea, nas Caldas da Rainha.

A criadora adora “desenhar com luz”, trabalhando muito bem os contrastes e a perspetiva. Ao admirar cada peça, conseguimos perceber a sua respiração e a sua personalidade, sentindo-as vivas, pulsantes, marcadamente autênticas.

Interpretar o que se vê é um excelente exercício mental para o observador e, neste caso, como temos um ponto de partida realista, fica-nos na alma a intuição que se manifesta em cada imagem, ricocheteando em nós traços de alta humanidade e agitação emotiva, plasmados na alma da artista.

Se perguntarem, tecnicamente, se essa exposição expressa a arte, somos obrigados a dizer que sim, pois explora magistralmente (e sem ter sido essa a intenção) a intelecção, além de evidenciar um método artístico cuja pauta está embebida em sensações, reflexões e criatividade.

O forte senso estético delineado em cada fotografia mostra-nos claramente o que é a literatura do contemplar, pelo ponto de vista da criadora, atiçando o nosso instante de observação, obrigando-nos a exercitar o nosso sentido de análise e de auscultação dos motivos criativos.

O trabalho de Odete Frazão consegue influenciar, estimular a reflexão, unir-nos a uma realidade provocativa - no sentido de aguçar-nos as sensibilidades – e caracterizar em nós a experiência de fundamentar a arte.

O seu olho clínico para a fotografia lembra-me Sebastião Salgado (1944-), no quesito “fotografar o seu mundo”, o que a poderá levar, também, a ser uma lenda viva da imagem, não só a documental. Assim como este imenso fotógrafo, Odete Frazão oferece-nos um puríssimo preto e branco, sendo, igualmente, uma artista que sabe desenhar com luz, o que permite uma transmissão de afetividades, pois transpõe as fronteiras da câmera. A luz interior da fotógrafa está claramente explícita na obra apresentada. O idealismo do seu acontecer é equilibrado por uma afinidade entre a sensibilidade da alma e o seu sentido estético, refletindo para nós, meros observadores, uma técnica magistral, fabulosa e ultra futurista. A sua singularidade é assente na inovação e na meditação, o que me leva a Leonardo da Vinci (1452-1519), quando este dizia que “a mais nobre paixão humana é aquela que ama a imagem da beleza em vez da realidade material. O maior prazer está na contemplação”. A força ascética de Odete Frazão está na paixão que transborda por aquilo que sente.

“Poesia com Luz” é uma enorme porta de entrada para a etnografia antropológica visual, pois instiga-nos à observação atenta e cuidada, estimulando o olhar a perscrutar o panorama enquanto narrativa acolhedora. Algo muito parecido com a proposta de Walter Baldwin Spencer (1860-1929) que assinalava a importância de transformar o real em arte, colocando a nu toda a beleza da verdade. E, assim, o respeito pelo processo ético-metodológico de construção de uma narrativa, talhada no recurso da linguagem do olhar, permitirá que, quando todas as recordações se tornarem nubladas na nossa mente, as silenciosas fotografias, agora em exposição, levar-nos-ão de regresso ao tempo em que foram feitas, obrigando-nos a um reencontro connosco. Religando-nos a um diálogo tempo-espaço que legitima a nossa existência e o que nela vamos construindo, especialmente no campo das emoções.

Ao estacarmos no nosso solo os alicerces de uma ponte de colóquios, estruturamos um pensamento sólido e duradouro que ajuda a construir uma Humanidade mais íntegra e elegante. A exposição de Odete Frazão ergue diegeses legítimas, com potencial de patentear demandas históricas e socioculturais, que serão as bases de todo um processo evolutivo futuro. Ou seja: temos à nossa frente um extraordinário ponto de viragem na arte fotográfica. Estamos diante da melhor fotógrafa da primeira metade do século XXI. Saibamos humildemente admirá-la.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Um jardim para Carolina

Revolucionária e doce. O que mais posso dizer de ti, minha querida Carolina? Creio que poucos extravasaram tão bem, tão literariamente, tão poeticamente, as suas apoquentações políticas. Vivias num estado febricitante de transbordamento emocional, que o digam os teus textos – aflitos – sobre as questões sociais ou, no mais puro dos devaneios sentimentais, as tuas observações sobre a música que te apaixonava. O teu perene estado de busca pelo – quase – inalcançável, fazia-nos compreender como pode ser importante a fortaleza de uma alma que não se verga a modismos ou a chamamentos fúteis vindos de seres pequenos. E por falar em alma, a tua era maior do que o teu corpo, por isso vivias a plenitude da insatisfação contínua. Esse espírito, um bom daemon , um excelente génio, que para os antigos gregos nada mais era do que a Eudaimonia , que tanto os carregava de felicidade, permitindo-lhes viver em harmonia com a natureza. Lembro-me de uma conversa ligeira, onde alinhava

Obrigado!

  Depois de, aproximadamente, seis anos de colaboração com o Jornal das Caldas, chegou o momento de uma mudança. Um autor que não se movimenta acaba por cair em lugares-comuns. O que não é bom para a saúde literária da própria criação. Repentinamente, após um telefonema recebido, vi-me impelido a aceitar um dos convites que tenho arrecadado ao longo do meu percurso. Em busca do melhor, o ser humano não pode, nem deve, estagnar. Avante, pois para a frente é o caminho, como se costuma dizer, já de modo tão gasto. Sim, estou de saída. Deixo para trás uma equipa de bons profissionais. Agradeço, a cada um, pelos anos de convívio e camaradagem. Os meus leitores não deverão sentir falta. Mas se por acaso isso vier a acontecer, brevemente, através das minhas redes sociais, saberão em que folha jornalística estarei. Por enquanto reservo-me à discrição, pois há detalhes que ainda estão a ser ultimados. A responsabilidade de quem escreve num jornal é enorme, especialmente quando se pr

O Declínio das Fábulas - I

  Em poucos dias, o primeiro volume do meu novo livro “O Declínio das Fábulas” chegará a todas as livrarias portuguesas. Esse tomo reúne uma série de temas que reverberam o meu pensamento nas áreas da cultura, da arquitetura, da mobilidade, etc. para uma cidade como Caldas da Rainha. O prefácio é de autoria da jornalista Joana Cavaco que, com uma sensibilidade impressionante, timbra, assim, o que tem constituído o trabalho deste que vos escreve. Nele, há trechos que me comoveram francamente. Outros são mais técnicos, contudo exteriorizam um imenso conhecimento daquilo que venho produzindo, por exemplo: “É essa mesma cidade ideal a que, pelo seu prolífico trabalho, tem procurado erguer, nos vários locais por onde tem passado, seja a nível cultural ou político. Autor de extensa obra, que inclui mais de sessenta livros (a maior parte por publicar) e um sem fim de artigos publicados em jornais portugueses e brasileiros, revistas de institutos científicos e centros de estudos, entre o