Olho de soslaio para um antigo
bilhete do Teatro Pinheiro Chagas, datado de 1954, que traz no canto superior
esquerdo, muito visível, o nome da Empresa Eduardo Montez, e vejo nele uma
história familiar deveras enriquecedora.
Aquilo que o ser humano vai
deixando pelo caminho são pedaços de uma crónica por contar.
A nossa gaveta da memória, com
o passar dos anos, vai do transbordamento ao esquecimento, por isso urge
proteger as informações adquiridas. O mesmo acontece com a história física, os
“papéis”, fotografias, etc., que vamos produzindo, na correria diária, referentes
aos acontecimentos (especialmente os culturais e sociais) ocorridos nas
aldeias, vilas e cidades.
No Brasil e nos Estados Unidos
da América existem centros de preservação da reminiscência popular documental, que
conservam, para deleite das gerações futuras, um aglomerado de emoções e
sentimentos, experimentados/vivenciados por gerações anteriores.
Caldas da Rainha deveria,
também, criar um centro de memória específico, exatamente nesses moldes. Seria
fundamental elaborar e executar um programa de salvaguarda de testemunhos físicos
do dia-a-dia, como é o caso daquele bilhete do Teatro Pinheiro Chagas.
Sei que o Museu do Ciclismo
vem, com denodo, tentando adquirir, proteger e expor esse tipo de documentação,
porém, ainda é pouco, pois falta-lhe verba para angariar espólios
(particulares, alfarrábicos e/ou de colecionadores), bem como um local de
grandes dimensões para um cuidado acondicionamento.
Olhar para um testemunho material
como aquele que citei acima, é trazer para a atualidade uma época distante (já
se passaram 67 anos desde que aquele bilhete foi produzido) e tentar, num
fascinante exercício de memória, imaginar as pessoas; as casas; as ruas; as
praças; o ir e vir dos habitantes do concelho, envolvidos com os seus afazeres;
as discussões nos mercados; os passeios no Parque D. Carlos I; os aquistas, snobs e arrogantes, a fumarem caros
charutos e a bazofiar grandezas (enquanto desfilavam suas estrepitantes
gorduras pelos corredores das Termas); a
juventude pobre, sem hipótese de alcançar um futuro próspero, porque os estudos
não lhes eram facilitados; os seus pais, que sonhavam incansavelmente com
bafejos de riqueza, porém, só lhes saindo na “sorte” o amargor do estatuto de
criadagem.
O que fazer com a memória?
Deixamo-la morrer num canto do cérebro e esvaziamos os bolsos da alma, atirando
o conteúdo para a sarjeta da obscuridade? Oferecendo, assim, ao futuro, indivíduos
sem passado, sem ideais, sem ideologias, e, como consequência, agarrados a
extremismos, especialmente aqueles que são capazes de erguer, e manter, ditaduras
e autoritarismos bacocos? A personalidade de um povo é o motor de um país. Uma
população apática, pouco exigente, produz uma nação fraca.
A personalidade que se pretende
forte constrói-se com memórias genéticas, com educação digna, com liberdade
cultural. Edifica-se, também, com as memórias físicas, com os restos de um
passado que um dia foi um princípio notável, em forma de livro, de teatro, de
cinema, de música, etc..
Uma criança que cresça
acompanhada de reminiscências expressivas, poderá transformar-se num ser
elevado, modificador (para melhor) de estruturas, vincado em cânones de
Liberdade, Igualdade e Fraternidade, capaz de criar uma nova sociedade, mais
justa, mais correta entre si e menos seguidora de totalitarismos exacerbados.
As fortalezas humanas devem ser
erguidas com respeito pela memória, inclusive a documental, e não apenas com a
bruta pedra, a argamassa religiosa e as prédicas (políticas) ardilosas.
O antifascista, historiador e
filósofo italiano Benedetto Croce (1866-1952) remata muito bem o que pensa
acerca da memória, seja ela cerebral ou documental: “A cultura histórica tem o
objetivo de manter viva a consciência que a sociedade humana tem do próprio
passado, ou melhor, do seu presente, ou melhor, de si mesma.”.
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